Anatomia de algumas dores

“Altos voos e quedas livres”, de Julian Barnes, explora a dor da perda por vidas extraordinárias
Julian Barnes, autor de “Altos voos e quedas livres”
03/06/2014

Mário de Andrade sistematizou toda a definição de um gênero literário ao dizer que “conto é tudo aquilo que chamamos de conto”. A frase não deixa de ser lembrada na leitura de Altos voos e quedas livres, de Julian Barnes. Embora apresentadas como contos, as três longas narrativas que formam o volume estão bem mais próximas da crônica. Narram fatos reais dentro de uma roupagem mais lírica, com indiscutíveis pontos de criação, até onde a criação se deixa inserir nestes textos.

Na primeira destas narrativas, O pecado da altura, Barnes conta o fascínio que o balão e a experiência de voar exerciam sobre os homens e as mulheres na segunda metade do século 19, assunto retomado no texto seguinte. Na ponta — ou no alto — do enredo está Gaspard-Félix Tournachon, ou simplesmente Nadar, fotógrafo e balonista, entre outras coisas, que se dedicou a encontrar (e conseguiu) a química exata para chegar à técnica da fotografia aérea.

Na segunda narrativa, No nível do chão, estão a atriz Sarah Bernhardt, um mito de sua época, e o militar e aventureiro inglês Fred Burnady. Sarah foi uma mulher de incontáveis encantos e amantes. Teria até, em suas passagens pelo Brasil, tido um romance com o imperador Dom Pedro II. Fred, um homem disposto a vencer desafios, fez várias viagens perigosas a cavalo e atravessou a parte inglesa do Canal da Mancha em um balão. Terminou morrendo em uma batalha. Pelo que nos conta Barnes, os dois foram amantes e Fred chegou a propor casamento a Sarah, que o teria desestimulado.

Finalmente, em A perda da profundidade, o autor chega ao cerne dos sentimentos que o levaram a este trabalho. Em 2008, morreu a agente literária Pat Kavanagh, esposa de Julian Barnes desde 1979. Este sentimento de perda o faz refletir sobre os encontros e desencontros da vida. Eles foram felizes, e a falta da esposa o faz pensar na própria morte. Mas Barnes vê que não vale a pena o sacrifício, e então passa a viver sob a pressão de ter que reverenciar a memória inapagável da mulher.

Revoluções pessoais
As narrativas dialogam entre si, posto que nas três existem dois sentimentos básicos, a emoção do encontro e a ferida da perda. Nadar encontrou sentido nos balões e na fotografia, e os perdeu. Fred tinha dois propósitos, Sarah e as aventuras; num determinado momento, também as perdeu. No caso de Barnes o encontro foi com Pat, uma renovação em sua vida, mas aí veio a morte e deu cabo de tudo.

Restaram as dores, e é com uma forte carga de lirismo e emoção que Barnes fala destas perdas. Mas o volume, que poderia se perder numa depressão profunda e até intragável, ganha fôlego em sua concepção. O autor prima por deitar lirismo em cada linha, e assim faz um livro até certo ponto triste, mas em momento algum melancólico. E toda a efervescência dos textos está na força dos personagens, homens e mulheres que, diante da encruzilhada, não temeram tomar o rumo que mais os fascinava.

Pat e Sarah, ao modo de cada uma, fizeram revoluções. A atriz, pela ousadia e disposição de assumir todos os seus sentimentos. Escandalizou uma época com seus amantes, suas liberdades, suas excentricidades, mas, sobretudo, se fez respeitar pela força de seu talento, pela qualidade de seu carisma. Pat, bem mais discreta e reservada, teve uma vida de aparência comum. Mas pelo que escreve Barnes, possuía uma indescritível força nas decisões que tomava. Isso a fez contribuir para a mudança de seu tempo.

Também os homens do enredo fizeram sua parte na reconceituação do mundo. Nadar, que retratou Sarah, encontrou no balonismo e na fotografia o sentido de sua vida. Foi aventureiro e perdulário, inventou mil coisas, quando, envelhecido, viu tudo escorrer entre seus dedos, que já não tinham forças para domar a vida – e mesmo assim marcou definitivamente seu tempo. Fred, também aventureiro, amou Sarah. Depois de rejeitado, não desanimou. Lançou um livro na mesma cidade onde, dois dias depois, Sarah se casaria com outro. Não se tem notícia de um encontro neste momento. O certo é que dali Fred seguiu inovando até ser levado pela morte. Enquanto isso, Julian Barnes faz sua lição ao narrar todas essas vidas, vividas ou não. E também ao revelar sua dor profunda, somente vencida nas lidas da escrita.

Reflexão saborosa
Altos voos e quedas livres se faz por analogias. Primeiro vem o conflito das relações pessoais, depois os sonhos. Nos dois primeiros momentos há o romantismo exagerado de uma época. Os amores são intensos e os desejos escudados numa força que leva seus protagonistas para além de todas as possibilidades, e mesmo quando desce a frustração, pouco importante, tudo já foi feito. E aí, toda a insegurança dos balões se transforma em coragem e determinação.

Depois vem o depoimento mais pessoal e forte. Barnes fere a própria pele e revela que o desrespeito pelo dor nasce também numa solidariedade fútil e inútil. Diante da dor do amigo, o melhor talvez é deixar que ela seja paulatinamente absorvida pelas novas condições impostas a quem sobrevive. É o curso natural da vida, nos ensina o autor.

“Você junta duas coisas que nunca foram juntadas antes. E o mundo se transforma.” A frase inicial do livro dá a senha para tudo que vem pela frente. Um texto de sentimentos e dores, mas também de ideias e lirismo. E que tem aquele ponto de partida que enche o leitor de desejos, posto que nos vemos frente a uma promessa irrecusável de divertimento e reflexão.

Altos voos e quedas livres
Julian Barnes
Trad.: Léa Viveiros de Castro
Rocco
128 págs.
Julian Barnes
Nasceu em Leicester e se mudou para Londres em 1946. Autor de vinte livros, ganhou, entre outros prêmios literários, o Man Booker Prize por O sentido de um fim. Trabalhou como lexicógrafo no Oxford English Dictionary. Entre seus livros de maior sucesso está o romance O papagaio de Flaubert.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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