Amores expressos na pele

Protagonista do novo livro de Luiz Ruffato transita, de Cataguases a Lisboa, entre a esperança e o desencanto
Ruffato por Ramon Muniz
01/12/2009

Outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver…
(Álvaro de Campos, Lisbon revisited)

 

Estive em Lisboa e lembrei de você, de Luiz Ruffato, é um dos livros da série Amores expressos. Trata-se da proposta de escrita de um texto ficcional ambientado em uma grande cidade. A Ruffato coube Lisboa, na qual viveu um mês centrado na tarefa de desenvolver, a partir dali, o seu projeto. Antes de iniciar propriamente o texto, através de uma pequena nota ele apresenta o seu protagonista: “O que se segue é o depoimento, minimamente editado, de Sérgio de Souza Sampaio, nascido em Cataguases (MG) em 7 de agosto de 1969, gravado em quatro sessões nas tardes de sábado do dias 9, 16, 23 e 30 de julho de 2005”.

O livro se divide em duas partes: a primeira, Como parei de fumar, passa-se no Brasil, em Cataguases, e a segunda, Como voltei a fumar, desenvolve-se em Lisboa. O esclarecimento inicial na nota é importante para se compreender o fluxo narrativo da trama e a própria construção do personagem principal. Serginho, um cidadão brasileiro das camadas populares, conta, numa linguagem que lhe é própria (minimamente editada, é claro, pelo entrevistador), algumas de suas muitas dificuldades em encontrar saídas para impasses que lhe foram colocados pela vida.

Sob dois subtítulos, aparentemente banais, em torno dos fatos de parar e de voltar a fumar, o texto se desenvolve entre Brasil e Portugal, de Cataguases a Lisboa. Sobre isso, Ruffato esclareceu, no Paiol Literário de janeiro de 2009, quando o livro ainda estava sendo elaborado:Escrever sobre Lisboa, para mim, é escrever sobre um personagem de Cataguases em Lisboa. Daquelas pessoas que vão tentar a vida em Lisboa e não sabem nem onde fica”. E, ainda, adianta: “A minha Lisboa não é a Lisboa de cartão-postal, com certeza”.

Com certeza, a Lisboa de cartão-postal não está no foco das discussões que se travam aqui, como a Cataguases das elites bem sucedidas não interessa a essa trama e a nenhuma outra narrativa do autor. Neste sentido, todo seu interesse está voltado para a vida do trabalhador que se movimenta pela sobrevivência e tenta driblar sua condição, transitando entre desejos e sonhos e a realidade adversa nua e crua que lhe cerca. Essa é a tônica de toda sua obra. Com matizes diversos, há uma polifonia de vozes compondo seus textos, reincidente na construção de suas criaturas, e que, de alguma forma, incide também na sua escolha temática da desterritorialidade. O poema de Miguel Torga, que serve de epígrafe para o romance em questão, ilustra bem a problemática vivida pelo protagonista Serginho na sua condição de estrangeiro, sem referência, propriamente dita, de um chão que lhe acolha e no qual se fixe em segurança.

Brasil onde vivi, Brasil onde penei,
Brasil dos meus assombros de menino:
Há quanto tempo já que te deixei,
Cais do lado de lá do meu destino!
(…)
Ah, desterro do rosto em cada face,
Tristeza dum regaço repartido!
Antes o desespero naufragasse
Entre o chão encontrado e o chão perdido.

A fuga do seu local de origem, do Brasil onde viveu, da Cataguases onde penou assombros de menino e de homem, leva Serginho à busca de uma vida melhor. Lisboa se oferece como uma alternativa para o operário provinciano que já não se adequava àquela vida. Encontrava-se com péssimo desempenho no trabalho, com um filho para sustentar, sem muita sorte na vida afetiva, casado que estava com Noemi, que só mais tarde revelou-se para ele como uma mulher de idéia fraca. Alguém o questiona: “O quê que você vai fazer da vida agora, ô Serginho”, que cismava ir embora “pro estrangeiro”, e, antes que debochassem, o seu Oliveira, pano-de-prato no ombro, destampou outra cerveja e apoiou o intento: “O caminho é Portugal”.

Dicção de oralidade
Toda a primeira parte é desenvolvida reunindo fragmentos de vida tanto do personagem principal quanto dos demais que o cercam e participam, de alguma forma, da sua decisão de partir. O fato de como deixou de fumar, que ilustra as primeiras páginas do livro, soa com certo humor em meio a tantas questões e fatos graves que transcorrem no curso de um discurso-depoimento. A linguagem escrita absorve a dicção de oralidade tanto no que se refere ao aspecto semântico das palavras escolhidas quanto à sintaxe estilisticamente desviante. Alguns trechos exigem fôlego para a leitura galopante que se instala. A disposição gráfica de algumas expressões chama a atenção para esses desvios de sentidos ou múltiplas possibilidades de interpretação. Especialmente na segunda parte, pode-se observar que o personagem-narrador vai incorporando a seu vocabulário local (palavras em itálico) o português da Lisboa (palavras em negrito) que vai sendo pouco a pouco explorada.

Na Lisboa que recebe Serginho, novos personagens e tipos vão se apresentando. Ele busca trabalho, melhoria de vida, talvez um amor. Encontra desemprego, confusão, desespero e muitas dificuldades. A cidade é um labirinto no qual ele se perde definitivamente, já que a primeira perda foi a da esperança de tudo se ajeitar. “(…) zanzei ao léu da rua da Rosa ao Elevador da bica… na frente da igreja de São Roque, uma aflição no peito, uma mágoa empedrada, e, de-afoiteza, entrei, o silêncio friento me acolheu, amparando meu cansaço.” Caminhar pela cidade que, com certeza, não era a Lisboa de cartão-postal o deixava aflito. Diferentemente da velha Cataguases, onde todos o conheciam, ali era um desconhecido estrangeiro, perdido num radical anonimato. “(…) e, comovido, ajoelhei e recordei a finada minha mãe… clamei pra que Deus auxiliasse aquele momento difícil de solidão e arrependimento.”

É assim que o autor dá continuidade à sua obra, numa opção explicitada em entrevistas e ensaios sobre o que escrever. Estava definido: escreveria “sobre o universo que conheço, o do trabalhador urbano, os sonhos e pesadelos da classe média baixa, esse recorte social indefinido, com todos os seus preconceitos e toda a sua tragédia”. É nesse universo que se movimentam os personagens de seus outros livros também. Dramatizar a vivência coletiva desse extrato social indefinido é um desafio sob diferentes aspectos. A forma dessa escrita precisa de reinvenção, já que os gêneros que abrigavam as vozes burguesas da modernidade já não se prestam à narratividade dessas histórias. Em Eram eles muitos cavalos, e talvez em outros livros, como Inferno provisório I e II, a proposta é a construção em mosaico na qual recortes em fragmentos se compõem dando ênfase a um sujeito coletivo que atua sob diferentes máscaras, diferentes abordagens frente a seus sonhos e tragédias cotidianas. Nesse painel de personagens não existe propriamente uma hierarquização de importância. Todos têm, a seu modo, um papel na dramatização desse conjunto estilhaçado da realidade ficcional. No caso de Estive em Lisboa e lembrei de você, a entrevista-depoimento de Serginho foi uma boa solução para contar essa história. O protagonista, com suas particularidades pessoais e discursivas se movimenta com certa liberdade em cena, sem contudo deixar de atuar como representante de uma coletividade que carrega consigo mesmo quando parece abandoná-la. Afinal, segundo Luffato, “partir não é só desprender-se de uma paisagem, de uma cultura. Partir é principalmente abandonar os ossos dos antepassados, imersos na solidão silenciosa dos cemitérios. E os ossos são aquilo que nos enraízam numa história comum, feita de dor e luta, de alegrias e memórias”.

Essas criaturas trazem a indefinição de classe, a rejeição de sua própria condição, a negação dos referenciais de origem, a falta de glamour de outros personagens caros à tradição literária. O não saber de si aumenta o abismo que representa o outro.

Em outras palavras, tudo isso corrobora para intensificar o sentimento de não-pertencimento a nenhum espaço, a nenhuma classe, a nenhuma esfera de identidade palpável. Os sobreviventes dessa miséria buscam, sonham com um não-lugar, e empreendem viagens sem volta por descaminhos que só consolidam sua situação: “Estrangeiro aqui, como em toda parte”, como poetiza Álvaro de Campos no poema Lisbon revisited. Para o poeta, também a cidade não é apenas um cartão-postal, é um personagem que partilha leituras de signos, memórias e vivências afetivas. Contar essas histórias dentro dessa temática implica em um aparente paradoxo. Como lidar com essa espacialidade fluida que não é capaz de garantir tranqüilidade de pertencimento ao sujeito e atender a sede de realidade de um mercado editorial contemporâneo?

Dois aspectos
A busca autoral de novas formas de expressão tem apontado a necessidade de novos e permanentes experimentalismos no sentido de atender às demandas de um contexto histórico mais complexo e às sensibilidades estéticas mais exigentes. Ao mesmo tempo em que, do ponto de vista temático, a desterritorialidade permeia a trama, a busca de referencialidade e concretude de uma realidade palpável é condição para esse fazer ficcional. Dois aspectos entram como recursos formais e expressivos. Um deles, já mencionado anteriormente, diz respeito ao caráter híbrido dos novos gêneros literários que se experimentam hoje. Estes exigem a incorporação à literatura de novas linguagens, como a performática, a cinematográfica, a jornalística e a midiática, no âmbito mais geral.

Outro recurso diz respeito a efeitos sensuais, aguçando os sentidos mais imediatos: imagens, sons, gostos, tatos e cheiros são elementos que garantem a concretude necessária para a construção dessa realidade. Segundo Erik Schollhammer, “esses efeitos sensuais alcançaram extremos de concretude, que nos permitem falar de um novo realismo afetivo”. A título de exemplo, a construção das imagens descritivas agrega vários elementos sensoriais para garantir o efeito de realidade a essa Cataguases ficcional: “Após observar cuidadoso a rua escura, a fraca luz dos postes filtrada pelos galhos dos fícus, o silêncio lacerado pelo silvo dos morcegos, o latido dos cachorros, o choro de um neném, o barulho de uma televisão, segredou que aquela parte do bairro (…) era um brejo.”

Cataguases é mais que uma obsessão para Ruffato, é o ponto de partida de uma vivência afetiva que, com todos os seus sentidos, possibilita amores, aparentemente mornos e dispersos, serem expressos, transgredindo o espaço e o tempo de silêncio a que foram condenados anteriormente. Lisboa é mais que cartão-postal, é cidade, é signo de continuidade, de busca de amores que se encontram para se perderem e que se desesperam na esperança, mesmo moribunda, de uma intervenção de Eros em novos encontros. Estive em Lisboa e lembrei de você não é uma história de amor, são muitas histórias de amor a uma gente sofrida que fica, que parte e que ama o amor parco, possível, mas de verdade. São histórias de um amor expresso na pele, nos olhos, e no cotidiano de gente que viaja de Cataguases a Lisboa, de Lisboa a Cataguases entre saudades, esperanças e desencantos.

Estive em Lisboa e lembrei de você
Luiz Ruffato
Companhia das Letras
83 págs.
Luiz Ruffato
Nasceu em Cataguases (MG), em 1961. Formado em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora, publico diversos livros, entre os quais o premiado Eles eram muitos cavalos e a série Inferno provisório.
Vilma Costa

É professora de literatura.

Rascunho