Alma naval

João Gilberto Noll se mostra em grande forma nos 24 contos de "A máquina de ser"
João Gilberto Noll: linguagem econômica imprime uma fluência sustentada pela oralidade retirada do cotidiano.
01/11/2006

João Gilberto Noll traz à tona mais um livro de sua safra; desta vez, para a alegria dos seus leitores, trata-se de um conjunto de pequenas narrativas. A máquina de ser reúne 24 contos em torno da temática geral sugerida pelo conto-título e seus desdobramentos.

Na verdade, estes textos têm a admirável capacidade de transformar temas em problemas. Ou seja, são questões que ganham envergadura na sua abordagem por saírem do lugar-comum de discussão temática e passarem a se constituir numa rede de fios que se tecem na contraposição de idéias e sentidos, relacionados sempre de maneira surpreendente.

No conto-título, o protagonista é um homem de negócios com função diplomática em outro país. Esta representação comercial e burocrática está longe de oferecer-lhe uma marca de identidade fixa que o remeta ao porto seguro de uma origem. Muito pelo contrário, é um estrangeiro em trânsito em terras alheias, cuja “máquina de ser é dada a funcionar”. É ela que o leva aos recantos desconhecidos e inexplorados e ao mesmo tempo o segura encolhido no seu canto, de modo a permanecer nos bastidores do mundo e de si mesmo. Atravessa fronteiras territoriais porosas e por isso mesmo indefiníveis, mas em contrapartida permeáveis ao trânsito e favoráveis às viagens.

O personagem do conto Alma naval entra em um clube pela premência de urinar e acaba vivendo uma série de situações imprevistas. Uma delas é a exigência de exibir a identidade e procedência. Embora haja a referência a uma suposta mãe, o personagem retoma a questão da desterritorialização quando afirma: “Tanto fazia se eu parecia um homem destituído de origem. Era justamente assim que eu entraria naquele clube”. É assim que cada personagem e, por que não, cada leitor deve entrar nessas narrativas e delas “se fartar do jeito que lhe apetecer”. (p. 77) O sentimento de desterro é marca registrada desses personagens, seu passaporte para atravessar essas fronteiras físicas e simbólicas impostas na constituição de suas máquinas de ser.

Este homem vive no limiar, buscando não se “furtar da linha entre o lazer, o sono, a atividade, a inércia” (p. 119), a sanidade, a loucura, a vida e a morte. Todos esses paradoxos, numa outra lógica, só encontram alguma síntese, se assim pode-se considerar, na sua inútil mas legítima busca de sentidos a partir da linguagem e sua construção. O encontro de uma solução de saciedade dessa busca é como o encontro erótico, sempre parcial, provisório e precário e, em última instância, impossível. Mas não deixa, entretanto, de servir de óleo mobilizador que azeita, de certa forma, sua máquina de ser na luta pela expressão.

Como “ativista da linguagem” ou “quadro militante da expressão”, na autodenominação do próprio Noll, é que também são constituídas suas criaturas, especialmente, seus narradores. Dentro dessa perspectiva é que se estabelecem as escolhas estéticas da construção textual. O eixo das invenções semânticas é relegado a um segundo plano, importante não resta dúvida, mas não tanto quanto a sintaxe . Esta se oferece ao leitor, incorporando, muitas vezes, a fragmentação da linguagem cinematográfica, cuja câmera funciona como fio narrativo que se desfoca e se transporta aos saltos e flashes no tempo e no espaço. É dessa forma que muitas vezes somos surpreendidos com o desdobramento do sujeito que narra. Ora é um eu que muda de foco e vira um ele, ora é um personagem masculino que vira um ela sem qualquer aviso. Essa construção aproxima-se assim da linguagem poética que, de certa forma, interrompe a comunicação, suspende a informação e sugere efeitos, só palpáveis a partir da sensibilidade corporal e afetiva. Olhos, bocas, ouvidos, pele, cheiros e gostos se irmanam na percepção do mundo ficcional criado.

Paixão e rigor
O aparente não-senso que, por vezes, se estabelece, longe de ser ausência é excesso. Os sentidos, por serem múltiplos e surgirem em muitas direções, se esgarçam e se perdem como náufragos para virem à tona mais adiante, talvez. Pode-se afirmar que o cuidado semântico, se não é prioridade, não é nada desatento. Basta observar os títulos de cada conto, escolhidos com paixão e rigor, um a um, como se fora para um poema.

Em entrevista à revista EntreLivros, de outubro, Noll declara: “Há pouco tempo descobri que o meu protagonista é sempre o mesmo.” Ou seja, apesar da multiplicidade de papéis sociais que esses personagens assumem e das diferentes situações que isto cria, eles são movidos por uma “máquina de ser” muito particular que, de certa forma, os une, não pela inócua repetição da experiência de vida ou morte, mas por laços de frágeis afetos. Neste sentido, o conjunto de narradores e personagens do livro de contos em questão estabelece uma linha de coesão tanto entre si quanto com o conjunto da obra do autor.

Sem nos deter muito nesta questão, alguns exemplos podem nos servir de estímulo para uma releitura ou novas leituras de Noll. Não há como não lembrar de João Batista de A fúria do corpo ao lermos o último conto João de A máquina de ser. Este personagem participa de um ensaio teatral despretensioso que retoma o mito judaico-cristão em oposição à entrega e à adoração pagã na Cidade concreta e seus percalços. Não seria a escritura de Noll um grande “ensaio”, no qual se experimenta a expressão dentro da precariedade e provisoriedade do grande Teatro do Mundo? A presença desse conto na coletânea não seria uma forma de homenagear o João do primeiro romance, com os nervos expostos e entregue à cidade pagã atravessada pela fúria de corpos enlouquecidamente desejantes, nos rituais de passagem de mitos cristãos?

No conto Suíte, o personagem é um habitante das ruas de Copacabana, do Rio de Janeiro, como o João do romance citado, que, com um refinado requinte cultural, não se sabe vindo de que origem, ao tentar dar um golpe num gringo, surpreende-se parceiro de uma suposta ópera. “Respondi narrando a história que me vinha e seria contada ao longo dessa ópera copacabanense. Um homem se mira no espelho de um rio extinto que corta sua aldeia.” (p. 46) Como não nos remeter a Bodas de Narciso, do primeiro livro de contos O cego e a dançarina? Mesmo que em breves lances, esses personagens se atualizam nesse limiar de vigília, sonho, expedientes de sobrevivência e desvarios da imaginação. O rio extinto que corta a aldeia de Narciso ainda serve de espelho. Este ainda aparece como imagem recorrente em outros contos do último livro. É a lente mediadora tanto da auto-imagem narcísica dos personagens quanto do olhar de sedução recebido do outro, nas vitrines espelhadas de um shopping de cidade grande. É o que se vê, por exemplo, no conto Monges. O shoppping, signo da cidade protegida por seus muros, no qual o personagem busca o anonimato e, portanto, a segurança, guarda suas seduções e perigos. O olhar do outro na vitrine ameaça, atrai e trai, seduz e traz o medo do engano, do outro e de si mesmo, da vida e da morte sempre à espreita.

A morte é outra imagem recorrente que deixou de ter uma mera abordagem temática. Nesse sentido, ela pode sugerir o que George Bataille já anunciava em seu livro O erotismo. Ela figura enquanto afirmação da vida que só pode ser compreendida a partir dessa linha fronteiriça que separa e, ao mesmo tempo, une vivos e mortos, amantes e desafetos, sonhos e desencantos, silêncio e fala.

Na coletânea, o corpo morto surge como numa peça musical: variações de um mesmo tema. Esse corpo está presente, por exemplo, na perda do filho e a vida que segue em Em nome do filho. Como contato de corpos de amantes e parceiros na sensação de insuficiência infantil trazida pelo momento de consciência e estranhamento da viuvez, dos contos Noturnas doutrinas e Biombos. Em um outro enfoque, numa referência intertextual aos contos de Nelson Rodrigues, O berço se desenvolve no espaço de um cemitério e o corpo morto é um ilustre desconhecido que possibilita ao protagonista uma feliz aproximação com a mulher que, supostamente, será a mãe de seus filhos e o “acolherá” em família.

Em alguns momentos podem até parecer redundâncias gratuitas, se não fora a supremacia da construção da linguagem em relação à organização da ação e dos elementos do enredo propriamente dito. É essa composição poética e musical que valida a saborosa leitura e dá aspecto sempre de novidade às mesmas circunstâncias críticas de vivência dos nossos protagonistas. O corpo vivo que se debruça sobre o corpo morto, em diferentes situações, experimenta-se, no atravessar da linha tênue de um outro lado. Situa-se na divisa, no entre-lugar, ou melhor, no quase não-lugar onde tudo ora tem a “cor de nada”, ora tem a cor vermelha do sangue ou do flash de luz que surpreende o personagem cego do décimo quinto conto, por exemplo.

Oralidade do cotidiano
A linguagem econômica, como a poética, imprime uma fluência sustentada pela oralidade retirada do cotidiano que segue e é capaz de naturalizar as situações mais estranhas. Noll declara: “Enquanto ficcionista, eu vivo numa camada que poderíamos chamar de voz. Eu quero muito mais essa voz do que a narrativa”. Ou seja, a expressão em sentido mais “puro” é perseguida, em detrimento da coerência das ações do enredo, em si. A palavra, menos que pensada, é saboreada em sua musicalidade, a exemplo da mulher que ao contato com o nome de um hotel promete não procurar o significado do termo Marabá no dicionário. “… eu só sentiria a emanação dele pela boca, feito melodia, sem materializar no som qualquer idéia, apenas seu jorro de expressão, seu entoar puro e simples.” (p. 92)

O protagonista do conto Noturnas doutrinas busca algum som, debruçado sobre o corpo do amante, recém-tomado pela morte, só aceita em definitivo pela ausência de voz. “Sua boca parecia aguardar uma mensagem prestes a ecoar… Sua mensagem não vinha… Ele estava morto, enfim.” (p. 76)

No conto Convívio, a protagonista é movida pelo desejo de ouvir a fala do outro, de seguir algum “som” por ele emitido, até que fizesse sentido. A expressão do outro passa a ser uma condição para que a relação se estabelecesse, para que aquelas duas máquinas de ser se friccionassem, se conectassem, se contaminassem pela arte do convívio.

Dar voz a essas máquinas de ser, em seus desejos e desatinos, é abrir mão de um poder autoral de controle absoluto de seus destinos, é estabelecer e perseguir a arte de um convívio suscetível a naufrágios e abismos, tanto do ponto de vista da escrita quanto da leitura. Isto porque qualquer voz só se viabiliza a partir de ouvidos que a persigam e a reconheçam na sua importância e inconstância e, além disso, se abram à interlocução.

A multiplicidade de vozes leva à quebra da linearidade narrativa e a conseqüente fragmentação imposta ao texto. Isto exige um domínio mais complexo da leitura, pois cobra uma participação mais efetiva do leitor na compreensão dos diferentes e simultâneos níveis com os quais esse tecido se realiza. O leitor é convocado a abandonar suas certezas e seus pré conceitos e assumir, como os protagonistas, uma “alma naval”. Esta tem um corpo que sangra, que goza, que fere, que é ferido, que morre, que vive, que fala, que cala, que pulsa. Ela precisa estar propensa e disposta às viagens, ao atravessar, num ir e vir sem trégua, as fronteiras porosas de ruas de uma cidade concreta, carregada de luzes, sombras, ruídos e silêncios e das da cidade dos sonhos, da loucura e dos desejos mais primordiais, concretizada só a partir da escritura. A aventura é cheia de acidentes e perigos, mas irresistivelmente sedutora e saborosa como tudo na vida dessas máquinas de ser que temos em cada um de nós.

A máquina de ser
João Gilberto Noll
Nova Fronteira
160 págs.
João Gilberto Noll
Nasceu em Porto Alegre, em 1946. Já publicou 14 livros, incluindo O cego e a dançarina, A fúria do corpo, Bandoleiros, Rastros de verão, Hotel Atlântico e Mínimos múltiplos comuns. Seu conto Alguma coisa urgente foi adaptado para o cinema em 1984, no filme Nunca fomos tão felizes, de Murilo Salles. Em 1997, Noll foi convidado a lecionar literatura brasileira no campus de Berkeley da Universidade da Califórnia.
Vilma Costa

É professora de literatura.

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