Alguns diálogos e muitas dúvidas

Reunião de ensaios de Bartolomeu Campos de Queirós desaponta com reflexões pouco aprofundadas
Bartolomeu Campos de Queirós por Ramon Muniz
01/06/2013

Conheci pessoalmente Bartolomeu Campos de Queirós meses antes de seu falecimento, em uma palestra em Santo Amaro (SP). Autor já prestigiado por longa carreira dedicada à literatura e à formação do leitor infanto-juvenil, lá estava ele a falar de seu último livro,Vermelho amargo (2011), que, postumamente, viria a ganhar o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Melhor Livro do Ano.

Na época do encontro, o pouco que tinha lido de sua obra (lembro-me da primeira publicação, O peixe e o pássaro, história de amor impossível entre os personagens do título) não me servia de referência. Mas de sua breve fala ficou a impressão de um escritor blasé e de certa forma monossilábico — que pouco queria falar sobre a obra. Do que refletiu sobre escola, o ofício do escritor, a formação do leitor, pouco me sobrou. Tive a impressão de que ouvia superficialidades de quem tinha tédio a controvérsias e cumpria um papel protocolar de divulgação da obra. Em seguida, li Vermelho amargo, que achei muito bonito, pleno de imagens da infância do escritor transfiguradas liricamente numa prosa poética de grande densidade e de exercício quase obsessivo de construção das metáforas (características sempre apontadas nesse autor).

A produção literária da memória de um tempo perdido tem sido plena de belas obras — lembremos Proust, claro. Em Bartolomeu, as relações familiares difíceis, a presença inquietante não da mãe, mas da madrasta, lhe trazem à mente, em vez das madeleines de Proust, o vermelho do tomate de todos os dias: “A esposa do meu pai prezava o tomate sem degustar o seu sabor”.

O livro ganhou o Prêmio São Paulo — e grande foi a repercussão na mídia pelo fato de o júri oferecer 200 mil reais a um autor falecido. (A convicção de parte dos críticos é sempre a de que o prêmio deve ser um alento financeiro para o escritor produzir novas obras com certo conforto.) Convivi curiosa com essa dissonância. O livro é muito bonito, mas talvez houvesse outros concorrentes que, com o mesmo ou até maior mérito literário, pudessem trabalhar importantes obras vindouras.

Em resumo, me ficou de Bartolomeu uma sensação ambígua de competência literária (ao menos em Vermelho amargo) com a idéia injusta — talvez já homem doente, talvez já cansado de batalhas que pouco importam — do escritor entediado.

Vagas memórias
Agora me vejo diante da leitura de uma publicação póstuma, Sobre ler, escrever e outros diálogos, que faz parte da série “Conversas com o professor”. Ou seja, tem como leitor eleito o docente de ensino Fundamental, ao qual, aliás, as editoras têm dado bastante atenção.

Mas que coisa, continuo no estado de desconfiança entre a interessante construção do texto — mesmo sendo ensaio, é lírico — e a facilitação de reflexões complexas. O não aprofundamento de idéias aqui presente poderia provocar controvérsias ou ceticismo, e isso, certamente, o perfil do autor não deseja.

Neste volume, organizado por Júlio Abreu, reuniram-se vários textos do autor já publicados em livros ou periódicos, mas nunca coligidos pelo próprio Bartolomeu. A primeira parte da obra reúne memórias da infância — são textos com o mesmo matiz e tom de Vermelho amargo, ainda que anteriores a este. A segunda parte da exígua antologia traz textos em que o autor registra sua atuação e suas convicções como educador, formador de leitores e autor comprometido com a infância e adolescência. Assim, no segundo momento da seleção, os textos dialogam bem com professores. (Sobretudo, como disse, porque muitos são registros reescritos de palestras.)

Da primeira parte, além das reminiscências, avultam muitas comparações entre a escola da própria infância e a escola do “hoje” em que o escrito havia nascido. Como Queirós aparece na literatura e começa a refletir sobre ensino como voz qualificada nos anos 1970, é dessa escola que vem a falar. Sobretudo da escola “primária”.

Meu irmão, o mais velho, se debruçava sobre a mesa e examinava, enfastiado, seu livro de leitura. Passava horas soletrando, com desalento, seus afazeres. Os deveres lhe pareciam insossos, pois, constantemente, pedia a meu pai para ‘lhe tomar as lições’. Meu pai negava por não necessitar mais de lições. (…) Eu invejava o lugar de meu irmão estudando os afluentes do Rio Amazonas, a rosa dos ventos, os pontos cardeais, as três caravelas… Eu sonhava rio, vento, direção e barco sem querer partir.

São memórias, quase apenas memórias. Lindas que sejam, parecem ecoar literariamente muito menos do que em Infância, de Graciliano Ramos, ou até mesmo O ateneu, de Raul Pompéia. Estarei comparando coisas diferentes? Creio que não. O avô (o de Bartolomeu escreve nas paredes), a família com mãe sofrida e pai autoritário, a descoberta das primeiras letras, o interesse precoce pela leitura e, sobretudo, a convicção de que a escola seria o lugar da ordem e da autoridade constituída são o centro temático dos vários textos: “Passei a duvidar da escola. Parecia-me um lugar só para dar autorizações. Se a escola não autorizasse, eu não poderia saber. O medo desse lugar passou a reinar em minha cabeça”.

Conjunto genérico
A segunda parte já soa diferente. Intitulada “Leitura e educação”, trata, com muita recorrência de idéias do autor — o que se justifica pelas datas das falas e pelos muitos e diferentes públicos com os quais Queirós dialogou —, do papel da escola, da pedagogia da leitura para o jovem e até da constituição da metáfora como pilar da poética literária.

É nesta parte que o leitor (e quem sabe o atento leitor-professor deste volume) pode mergulhar com mais benefícios. A despeito de não estarem sempre em primeiro plano, certas idéias do escritor são enérgicas. Por exemplo, Bartolomeu afirma, em muitas destas palestras e/ou artigos, que a escola é servil, e, por assim ser, impede uma profícua relação com a literatura: “A literatura é feita de fantasia. A escola, ‘servil’, quer transformar a literatura em instrumento pedagógico, limitado, acanhado, como se o convívio com a fantasia fosse um bem menor”.

Em outro momento, o autor persevera no mesmo tema: “Daí, todas as vezes que a escola lança mão da literatura, quer transformá-la em ‘instrumento pedagógico’, mesmo que cortando as asas do leitor para um vôo amplo, desmedido, desfronteirado. A escola reduz as funções maiores do texto literário e o transforma em objeto de convergência sem escrúpulo”.

O que Bartolomeu deseja intensamente é que, a despeito da escola (aquela que viveu, autoritária porque ligada ao sistema), a ela resistam “a liberdade, a espontaneidade, a afetividade e a fantasia” — para ele, as verdadeiras fundadoras da infância. E o instrumento de resistência é a construção literária. Essa parece ser a profissão de fé do autor. Que a escola é impositiva, todos sabemos; é sua função, ao menos dentro de certos sistemas; que a literatura, através da leitura, é libertária, também sabemos. Sobra, por isso, um pouco de desgosto no leitor.

Como professor, Bartolomeu confessa que parte de seu ofício consistia em lembrar os alunos de que “o sujeito não deve apenas se sujeitar ao estabelecido”. Ou seja, vem obsessiva a rejeição ao autoritarismo do establishment. Mas isso é genérico, não traz um corte profundo.

Como escritor, o grande desafio é manter a liberdade, a fantasia e as dúvidas — dele mesmo e dos leitores. E o único jeito de fazê-lo é através da ficção, ou seja, “fantasiar um outro destino para o real”. Idéia essa que se completa por trás de suas obsessivas metáforas: “Navego na cobiça de um mundo mais bonito”.

Reflexões perdidas
Difícil conciliação a do pedagogo com o escritor. Principalmente porque metáforas demais escondem idéias boas, enquanto que elas existem para ganhar “todas as letras”. Parece — embora eu corra o risco de encontrar uma síntese de seu pensamento onde ela não existe — que o instrumento conciliador pode estar na característica que lhe é atribuída por todos: a criação de um mundo pleno de metáforas. Ou seja, um mundo em que o homem se encontrará livre para pensar, interpretar por conta própria o que o escritor lhe propõe. Diz o autor: “(…) exerço a metáfora não apenas como uma figura de linguagem. A metáfora é apta também para democratizar o texto, torná-lo possível a um número maior de leitores. Por assim dizer, uso com desmedo suas qualidades”. Assim, a metáfora, a grande e maravilhosa impropriedade estilística que as línguas possuem, nas mãos de Bartolomeu torna-se instrumento ideológico de democratização…

O autor reafirma, apesar do uso do jargão, que a literatura é “capaz de abrir um diálogo subjetivo entre o leitor e a obra, entre o vivido e o sonhado, entre o conhecido e o ainda por conhecer”. Interessante, porém carente de maiores argumentos. Onde estarão, para nossa paz, outros textos mais profícuos de Bartolomeu Campos de Queirós?

Ao leitor crítico não pode ser dada a tarefa de melhorar uma obra a partir de suas próprias interpretações. Por uns momentos, sinto que posso aqui tê-lo feito, sobretudo porque deixo de fora certas incoerências, clichês pedagógicos e paradoxos que também vislumbro nestes escritos. Por outro lado, gostaria de dialogar mais com esse escritor. O fato é que compartilho aqui minha dúvida sobre o tão incensado autor mineiro: qual é mesmo a estatura das reflexões sobre educação e literatura de Bartolomeu Campos de Queirós? Talvez seja assunto para outros volumes póstumos que certamente aparecerão.

Sobre ler, escrever e outros diálogos
Bartolomeu Campos de Queirós
Autêntica
120 págs.
Bartolomeu Campos de Queirós
Nasceu em 1944, no interior de Minas Gerais, e faleceu em 2012, em Belo Horizonte. Cursou Filosofia e depois foi estudar Educação e Artes nos Instituto Pedagógico de Paris, onde amadureceu importantes projetos de leitura para o Brasil, como o ProLer e o da Biblioteca Nacional. Publicou cerca de sessenta obras, entre textos infanto-juvenis e de propósitos didático-pedagógicos. Foi membro do Conselho Estadual da Cultura de Minas e era membro da Academia Mineira de Letras. Ganhou vários prêmios nacionais, como o Jabuti, o Grande Prêmio da Crítica em Literatura Infantil/Juvenil pela APCA, o da Academia Brasileira de Letras e o Selo de Ouro da FNLIJ.
Márcia Lígia Guidin

É escritora e editora. Autora de Armário de vidro – Velhice em Machado de Assis, entre outros.

Rascunho