Alegria derramada

Resenha do livro "Palavra parelha", de Anibal Beça
Anibal Beça, autor de “Palavra parelha”
01/05/2009

De imediato, poderia nos surpreender este Palavra parelha, do poeta amazonense Anibal Beça, pela coragem de correr o risco de não “cortar os excedentes” acerca dos quais o livro, aparentemente, estaria precavido: “Nada de adiposidades”, “os adjetivos que me perdoem,/ os substantivos são mais esbeltos”, “e a Nova Era recomenda que sejamos seletos” constituiriam versos-testemunhos do apreço a uma poética cautelosa quanto ao perigo do caudaloso e, por esse motivo, causaria espanto uma coletânea de poesia com quatrocentas páginas, volume mormente encontrado, hoje, em edições de obras completas, reunidas ou selecionadas de poéticas canonizadas.

Todavia, o livro de alguém que já publicou outros treze, ao longo de uma carreira iniciada há mais de quarenta anos (a estréia foi em 1966, com Convite frugal), exige também cautela de nossa parte. Muitas vezes caudalosos no superestimar do conciso, esquecemo-nos de que nem sempre menos é mais. O extenso não significa, necessariamente, perda de tensão e, no caso de Anibal Beça, cuja “meta é a linguagem derramada”, parece culminar em ganho considerável de tesão. O impasse, portanto, diria respeito ao sentido do verbo “derramar” evocado. Se entendermos o derramado não como o excedente adiposo, mas a excessiva fecundidade, fluência e fertilidade rumo ao prolífero (e assim interpreta Astrid Cabral, em minucioso prefácio), poderemos enxergar “em cada passo a surpresa/ revelando tanto encanto”. E o que inicialmente nos teria soado contraditório em passagens como “meu verso quero enxuto mas sonoro” viria agora a transfigurar-se em plena coerência com a palavra regente do livro — a que se faz parelha e com a qual, em cópula e casamento, sofremos a gestação, o “parto” e a prole.

Contagiados pelo gesto pater-e-maternal de quem escreve a lamber a própria cria, irmanamo-nos em certo vocábulo, de recorrência nunca banal pelas páginas e que legitima a dinâmica do derramamento desejado e atingido, uma vez desencadeador não de um grande livro com cinco blocos de poemas, mas de um imenso bloco (berço) poético preenchido por cinco livros (filhos): “alegria”. É ela — a alegria, alegria, alegria — isto que, vestindo o “Dionysio” travestido em Beça (“somente na alegria é que me morro”), vem “imolar-se na sede” e beber de uma notável versatilidade formal e estilística, quase compulsiva por alimentar os famintos “ossos da memória” e a carne destes vários livros dentro de um livro, em que consistem Cinza dos minutos, Chuva de fogo, Lâmina aguda e Cantata de cabeceira. Cada um deles traz código genético autônomo e aberto às reverberações históricas inauguradas com o leitor e outras palavras que, sempre parceiras, entre si se revelem incestuosas.

Concebida Palavra parelha na condição de um ímpar Memorial da fala (e do falo), resgatamos o que — numa poética de grande apelo rítmico e fônico — despontaria, enfim, essencial: o fato de que a música é o tempo da memória tornado ato. Essencial na música é ser, conforme sua etimologia originária, a arte das musas, a arte das filhas de Mnemozyne, a deusa grega da memória. A pena de Anibal Beça — que também é compositor — se sabe flauta mesmo quando fora da partitura e dentro da literatura, pois a memória já se dá musicalmente, porque musal. Se memorada e comemorada realiza-se a própria vida velada e desvelada, seguimos com o poeta afinando-nos: “A vida é toda música em seu curso”. Decorrem daí os “desmandos dos impulsos” que ouvimos por toda (p)arte em Beça. Insaciável, sua musa ensina que o mais é sempre menos do que o (en)canto pode vir a ser. Toda verdadeira poesia se compreenderia, então, ao mesmo tempo enxuta e derramada, haja vista que nos seus limites transborda tudo aquilo que os esgarça e corrompe. Talvez seja por isso que o verso de Anibal Beça queira-se enxuto, para que, nele e a partir dele, possa e possamos ter a experiência vital do derramamento. E vice-versa.

Palavra parelha
Anibal Beça
Galo Branco
400 págs.
Igor Fagundes

É poeta e crítico literário.

Rascunho