Acerto de contas

Crônicas ficcionais sobre a vida cotidiana no Moçambique pós-independência usam uma rua e seus moradores como metáfora do país africano
João Paulo Borges Coelho, autor de “Crônica da Rua 513.2”
01/02/2021

Podemos tomar a literatura como uma brincadeira ou um jogo. Mas um jogo no qual o leitor terá primeiro que descobrir como brincar. Há gêneros em que a brincadeira já está mais ou menos explicitada, como nos romances policiais ou na ficção científica, embora ainda caibam variações e subversões. Nos romances em geral, o autor, que não quer brincar sozinho, tem que fornecer pistas. Às vezes, até mesmo um manual de instruções ou um mapa de como ler os capítulos, como o faz Julio Cortázar em O jogo da amarelinha. No caso de Crônica da Rua 513.2, do historiador moçambicano João Paulo de Borges Coelho, o título já diz muita coisa. Dividindo 513 por dois teremos 256.5, o que seria uma referência à data de independência do país, 25-6-75, segundo Nazir Ahmed Can, em um breve estudo inserido no volume. E o uso de “crônica” no título é reforçado por uma epígrafe retirada de O homem sem qualidades, de Robert Musil: “Até os pequenos atos da vida cotidiana, na sua soma social e pela faculdade que têm de poderem ser somados, produzem infinitamente mais energia do que os atos heróicos”.

Sendo assim, o que temos é a vida de homens e mulheres “comuns” durante os primeiros tempos da Revolução, levada a cabo pela Frente de Libertação de Moçambique, a Frelimo. A Rua 513.2 é um microcosmo dos dilemas enfrentados pela população, “um caleidoscópio de pequenas vidas”. Os personagens, embora não sejam caricaturais, representam posições sociais específicas. Como o Basílio Costa, português branco que decide ficar, apesar da partida da mulher, e que trabalha como despachante no porto. Há o diligente e neurótico Francisco Filimone Tembe, preto (assim aparece no texto), secretário do Partido, um cão de guarda que vigia tudo e todos. Antes morava em um bairro popular e se mudou para a rua perto do mar como pagamento por sua fidelidade política. Valgy é um comerciante indiano de produtos importados que vê sua bela mulher sul-africana fugir. O professor universitário Dr. Pestana, que sempre tentou se manter neutro, não aguenta as perseguições de Filimone e vai embora, não sem antes deixar uma armadilha preparada em sua casa. O “mulato” Zeca Ferraz é mecânico de automóveis. Sua mulher, Guilermina, é uma liderança na igreja e na cooperativa de costureiras. A filha dos dois, Beatriz, é a bonitona da rua. Recém-chegados do interior do país temos os organizados e disciplinados Teles Nhantumbo, bancário, e Alice, professora. A família de Josafa e Antonieta Mbeve consegue se mudar de um barraco de madeira e zinco cercado “por um charco imundo onde pululavam mosquitos” para uma casa na rua. Graças à interferência do primo Antoninho, subornado com algumas caixas de cerveja, surrupiadas da fábrica onde Josafa trabalha. Tito Nharreluga veio do interior cheio de sonhos e ao se juntar com Judite, mulher mais velha, com dois filhos, vai conseguir se estabelecer numa casa semidestruída. Foi oferecida pelo secretário Filimone, encantado com os deliciosos bolinhos de feijão que ela frita para manter a família. Alberto Pedrosa, que fecha esta nossa apresentação dos personagens principais, também viera do interior mas conseguira alcançar o importante cargo de diretor provisório de uma empresa estatal que tem na laranja seu produto principal. Leva uma vida sofisticada, consumindo produtos importados.

Fantasmas
Para tornar a “brincadeira” ainda mais interessante, o autor acrescenta fantasmas. Ou seja, antigos residentes que perturbam a paz dos atuais moradores. Filimone, o secretário do Partido, tem em seus calcanhares o inspetor Monteiro, da nefanda PIDE, a violenta polícia política portuguesa encarregada de impedir a revolução. Monteiro não tem lá muita moral, porque antes da independência já fugira para a África do Sul com a mulher. Mas nem por isso deixa de azucrinar Filimone sempre que pode, até porque entende do ofício. A família Mbeve tem que conviver com o fantasma de Arminda de Souza, “velha prostituta branca reformada”, obrigada a mudar-se para um subúrbio à medida em que seus atrativos e seus clientes diminuem. Nesse caso, até temos uma boa relação entre ela e Antonieta, sendo pelo menos tolerada pelo bonacheirão Josafa. O doutor Pestana, repetindo seu padrão de neutralidade acadêmica, não aparece para Tito e Judite Nharreluga, mas não se furta ao despeito ao ver pessoas provenientes de uma classe mais humilde ocuparem o que sobrou de sua antiga casa, chamando-os de “usurpadores”.

Acho que já temos o suficiente para proceder a uma avaliação crítica da “brincadeira” proposta por João Paulo Borges Coelho em seu livro. Antes é preciso dizer que o narrador, em terceira pessoa, aqui e ali aparece como um morador da rua, ou seja, como alguém que também passou por aquela experiência, que também viveu os primeiros tempos da revolução moçambicana, como é o caso do autor. A obra, como consta do título, é uma “crônica”. Publicada em 2006, 30 anos depois da independência, funciona como um balanço ficcional da revolução. O autor é um excelente cronista dos inúmeros problemas, encarnados nas agruras cotidianas dos seus personagens.

Falhas da revolução
Antes de mais nada o projeto político autoritário, cheio de falas grandiloquentes e vazias, devidamente satirizado, sobretudo no capítulo 11, em que o presidente Samora Machel visita a Rua 513.2 e atribui as dificuldades aos inimigos da revolução, “a raiz má”. Em segundo lugar, mas talvez mais importante, está a absoluta incompetência econômica que não resolve e até agrava as dificuldades materiais do povo com sua política de racionamento. E, por fim, o reflexo das questões anteriores: o toma lá dá cá, a corrupção, a busca de brechas no sistema para enriquecer ou simplesmente conseguir sobreviver. É o caso de Alberto Pedrosa vivendo como um nababo graças às possibilidades que são abertas por sua posição de diretor de uma empresa estatal. Teles Nhantumbo, por sua vez, aproveita a reputação de bancário sério e arma um esquema de financiamento para uma companhia pesqueira inexistente. Acaba tendo que fugir para não ser preso. Já o ingênuo Josafa Mbeve presenteia o secretário Filimone com duas caixas de cerveja, o que não impede que ele seja acusado de cometer “um grande crime de sabotagem econômica”. Como lhe explica o policial que o prende: “Não ouves a rádio? Não ouves o Presidente Samora repetir o que acontece aos corruptos como tu? Sanguessugas agarradas às empresas do Estado, chupando a riqueza do povo!”. Como dizia o slogan da revolução: “Unidade, trabalho e vigilância”.

É instrutivo contrastar o destino de Josafa Mbeve ao de Alberto Pedrosa. Pedrosa perde a posição de diretor na estatal porque tinha que ceder tantas laranjas para as reuniões do partido que a empresa afunda. Mas, sempre atento, socorre seu vizinho Zeca Ferraz. O mecânico ficou sem serviço por conta do racionamento de combustíveis. Sua mulher o obriga a comprar um barco de pesca. Acontece que os peixes não são muitos e o que o Estado paga por eles é pouco. O esperto Pedrosa fará o papel de intermediário, canalizando peixinhos para o mercado negro. De quebra, ainda se casa com Beatriz, a linda filha dos Ferraz. Enquanto isso, Judite tem dificuldade para fazer suas deliciosas bagias: falta farinha. Seu marido, Tito, desempregado, recorre aos pequenos roubos e tem um triste fim.

O livro é um acerto de contas com a revolução. Uma revolução necessária para encerrar o regime colonial, com suas injustiças, hierarquias (inclusive a racial) e violências, “para poder enfim reinventar a miragem de uma nova humanidade”. Mas que fracassou. O autor não escreveu um romance, não há exatamente uma trama que costure todo o livro, exceto a metáfora da “Rua 513.2”, ou seja: o destino comum dos que viveram aquele tempo. O modelo da crônica acaba por ser a força e a fraqueza do livro, que permite fazer um inventário dos problemas da revolução, de forma contundente e bem-humorada ao mesmo tempo. Mas a falta de um enredo tira um pouco o gosto da brincadeira.

Crônica da Rua 513.2
João Paulo Borges Coelho
Kapulana
315 págs.
João Paulo Borges Coelho
Nasceu em Portugal, em 1955, e se mudou cedo para Moçambique. Professor titular de História Contemporânea na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, é também autor de romances, contos e novelas. Sua premiada obra está traduzida em diversos países.
Marcos Alvito

Professor alforriado da universidade, dedica-se a oferecer cursos livres de literatura e ao Urucuia, podcast voltado para ajudar a ler Grande sertão: veredas, sua paixão maior.

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