Abismos e descaminhos

"Baumgartner", de Paul Auster, reconstrói a vida de um homem partido, uma verdadeira ode à aleatoriedade da vida
Paul Auster, autor de “Baumgartner”
01/05/2025

Num dia, há vida. Um homem, por exemplo, em perfeita saúde, nem sequer é velho, sem nenhum histórico de doenças. Tudo é como era, e sempre será.
Paul Auster, A invenção da solidão

No romance Senilidade, o italiano Italo Svevo narra a história de Emílio, um homem de 35 anos que, diante dos seus abismos pessoais, vê — com uma precocidade feroz — os primeiros sinais de que está envelhecendo. Enquanto vive, o que acha ser somente uma existência medíocre, o personagem de Svevo vai esbarrando nos acasos e dilemas do homem moderno.

Paul Auster foi um leitor de Svevo, uma influência quase silenciosa — não fossem as menções em Desvarios no Brooklyn — em sua obra. E, assim como para Emílio, as criações do norte-americano sempre foram recheadas do acaso e do absurdo cotidiano. Não à toa, A trilogia de Nova York abre com um romance, Cidade de vidro — primeiro livro publicado por Auster com seu nome —, regido quase que, unicamente, por esses dois elementos: o acaso e o absurdo. Sem ironia alguma, o que demonstra o projeto literário do escritor, Baumgartner, o livro derradeiro de Auster, é também uma ode à aleatoriedade da vida, aos caminhos e descaminhos que encontramos.

Aos 71 anos, Sy Baumgartner é um professor às raias da aposentadoria. Vivendo da memória da esposa morta há uma década em uma tragédia no mar, ele mesmo parece esperar seu fim. O primeiro lance de dados do livro, escrito por Auster em parte já consciente do câncer que o mataria, acontece quando Baumgartner sofre um acidente em casa, colocando o protagonista frente a frente com o seu reflexo no retrovisor da existência humana — algo já experimentado em Viagens no scriptorium, em que um velho sem memórias se vê trancafiado em um quarto observado por câmeras, em Noites de oráculo, a história de um sujeito que testemunha tudo o que escreve em um caderno se torna realidade, e em tantos outros livros de Auster.

Enquanto rememora a vida de Baumgartner, Auster não esconde o desprezo pela volatilidade da cultura norte-americana, ao mesmo tempo que ela é a sua força-motriz. Se de um lado existe Saul Bellow, uma influência notável ao longo de toda a sua obra, há também a política. Sy tenta não reverenciar por demais tudo aquilo que é muito americano, mas não consegue fugir de um patriotismo natural.

Em paralelo a tudo isso, a história se parece como um microcosmo do mundo, uma enorme metáfora entre o ser e o estar. Desse mesmo jeito, Auster cria arquétipos — como o brasileiro Bernardo Carvalho tão bem fez em As iniciais — e tenta espelhar o mundo ali. Não convém explicá-los, pois existe um acordo silencioso que lega ao leitor o dever de enxergá-los.

Solidão
Baumgartner é uma investigação sobre a solidão da sociedade pós-moderna, uma condição alienada e alienante. Sy é como o homem memorioso de Borges, alguém cujo isolamento o lembra constantemente de que poderia ter sido e não foi. O maior combustível desse mundo flutuante é Anna, a falecida. Em alguma medida, tudo gira em torno dela. A sua ideia de felicidade está ligada diretamente à esposa.

Por coincidência ou não, Philip Roth, falecido em 2018, também usou seus últimos romances como uma tentativa de dialogar com a finitude da vida. Homem comum, Indignação, A Humilhação e Nêmesis — sua tetralogia final — são todos livros que querem compreender o Santo Graal do homem: a sua própria vida. Auster, ao contrário, usou seu penúltimo romance, o colossal 4, 3, 2, 1 para mostrar como não existe determinismo, somente o acaso.

Ao fim e ao cabo, tanto Auster quanto Roth retratam sujeitos partidos, compartimentados pelo que encontram. Se no entreguerras havia um quê de esperança, após Auschwitz, como disse Adorno, parece não caber mais nada a não ser a desesperança. O crítico James Wood, quando do lançamento de Invisível, ressaltou a fragmentação do o romance e dos personagens como uma característica da literatura pós-moderna.

Baumgartner é a exegese da vida, uma vida que existe depois da bomba atômica, do 11 de Setembro e da pandemia de covid-19. É uma vida que se ergue diante do impossível, que resiste à tentação do seu próprio fim. Sy, apesar de tudo, é forte, à sua maneira, mas é. Paul Auster, diante do câncer, também foi. E também foi quando seu filho morreu de overdose em 2022.

Além da imaginação
É possível acreditar nos paralelos entre Auster e seu personagem, mas não apenas. Em um dos seus melhores livros, Sunset Park, usa a crise de 2008 para criar um romance sobre pertencimento e identidade. Lembremos que a casa de Sy era vazia — ele mesmo vivia como um fantasma de si — até à chegada da aluna, da mesma forma os quatro personagens iniciais de Sunset Park também habitam uma casa abandonada, entretanto, não metaforicamente.

Outro ponto importante de Baumgartner é que Sy só possa se sentir vivo novamente quando as memórias da esposa passam a ser reviradas. Assim, a sua existência não se desatrela da de Anna, ao contrário. Ela é o nêmesis do marido, consumindo-o pouco a pouco, deixando somente uma ideia do que ele era. Não me recordo de Auster ter comentado a morte do filho — ou mesmo da neta, de apenas dez meses, que consumiu as drogas do pai —, mas certamente esses episódios, que estão além da imaginação, descarrilaram no escritor um torrente de emoções e ideias, uma pulsão de morte que alimenta, mas também corrói.

E é assim que um artista lida com a tragédia — até mesmo a sua. Julian Barnes usou a morte da esposa para escrever Altos voos e quedas livres. Boris Fausto partiu do mesmo luto para escrever O brilho do bronze. David Grossman, que perdeu o filho — sargento do exército israelense — durante o conflito com o Líbano, escreveu Fora do tempo. Todos esses livros são, em parte, inclassificáveis: ora, romance, ora mergulho na dor mais íntima. Todos, entrementes, são a única forma que seus autores conseguiram lidar com o inefável e o inexplicável.

Quando a razão e a realidade se sobrepõem ao sublime, não resta outra saída senão a arte. Caso contrário, o escape sempre será a loucura. Baumgartner, o último romance de Paul Auster, reconstrói a vida de um homem partido, e mostra por que o escritor é um dos mais importantes no seu país e, ainda assim, consegue estabelecer uma relação ampla a respeito da natureza humana. Como canto do cisne, o livro é uma peça-chave para entender a obra de Auster, um escritor genial cujo centro do mundo era o seu próprio quintal.

Baumgartner
Paul Auster
Trad.: Jorio Dauster
Companhia das Letras
168 págs.
Paul Auster
Nasceu em Newark, Nova Jersey (EUA), em 1947. Escritor, roteirista e diretor norte-americano, conhecido por suas narrativas metafísicas e exploratórias da identidade, do acaso e da intertextualidade. Autor de A trilogia de Nova York, sua obra mistura mistério, existencialismo e literatura pós-moderna. Também escreveu roteiros e dirigiu filmes, consolidando-se como uma das vozes mais marcantes da literatura contemporânea. Morreu em 2024, aos 77 anos, em decorrência de um câncer.
Jonatan Silva

É jornalista e escritor, autor de O estado das coisas e Histórias mínimas.

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