Das entrevistas de Philip Roth que tenho arquivadas, uma frase sempre me aguilhoa, golpeando-me como um bordão inconveniente: “Nenhum ser humano está preparado para o que deve enfrentar em sua vida”. De uma verdade irretocável, esse pequeno conjunto de palavras poderia ser a divisa do brasão ou do ex-libris de um cético, para quem o homem vive em permanente mal-estar, perturbado pelos acontecimentos da existência na qual o destino ou a divindade o jogou sem lhe dar qualquer direito de escolha — ou, antes, de se recusar a nascer.
Mas o pensamento de Roth permite uma reflexão mais angustiante: ainda que se disponha a seguir vivendo, o ser humano permanecerá de alguma forma imaturo, defrontando-se com incidentes que não conseguirá entender, diante dos quais um possível gesto de revolta talvez produza meros arranhões na roda da fortuna; certamente nem isso. E, pior, toda a sua dolorosa experiência resultará inútil para seus semelhantes e às gerações que o sucederem, pois, ainda que ele esbraveje, denuncie ou gaste a maior parte de seus dias gravando nas folhas em branco suas vicissitudes, os que o sucederem na face da Terra pouco aproveitarão de seus esforços, pois, no fundo, toda experiência é intransmissível.
Se, de fato, “nenhum ser humano está preparado para o que deve enfrentar em sua vida”, resta ao homem apenas a resignação diante dos fatos. Submeter-se à miséria em que vive, sem jamais procurar entendê-la, sem jamais ter a ousadia de lhe conferir um sentido. Haveria, assim, um único direito assegurado ao ser humano: o de espernear.
Âncora no vazio
Marcus Messner, o protagonista da novela Indignação, de Philip Roth, experimenta, de maneira dramática, o axioma de seu criador. Em sua passagem à vida adulta acontece o que reiteradamente ocorre a todos: o abandono das certezas da infância e dos sonhos da adolescência para ingressar na árdua e penosa tarefa de viver. Também para ele Pandora abre sua caixa, deixando que o mal se interponha entre sua maneira de ver o mundo, suas frágeis certezas, seus valores, e a realidade, em relação à qual o que ele pensa ou deixa de pensar resulta insignificante.
Hesíodo, na Teogonia, não deixa dúvidas: ao abrir sua caixa (ou verter o conteúdo de sua ânfora), Pandora obedece aos desígnios de Zeus: fazer da desgraça um presente para os homens, dispersar pelo mundo tristes inquietações, cobrir a terra de males. Também obedecendo a Zeus, Pandora fecha o recipiente antes que dele escape a Esperança, o que, concluo, implica duplo sortilégio: além dos malefícios, condenar o homem a sonhos que não passam de quimeras ou aporias, pois a esperança, presa para sempre no escuro do receptáculo, não passa de uma âncora a oscilar no vazio.
No caso de Marcus Messner, todos esses males serão potencializados pela sua própria personalidade. Jactanciando-se de seu “pendor para a frieza dos lógicos”, que o “transformara no esteio da equipe de debate do colégio”, ele descobrirá que, ao fim e ao cabo, a lógica não tem serventia alguma no mundo, pois a realidade é visceralmente irracional.
A curta jornada desse personagem chega a ser tragicômica — ainda que, em certos trechos, o leitor seja tomado por uma aflitiva sensação de impotência. Messner é um filho dedicado; mas seu amor pelo pai ― um açougueiro kosher sem estudos, que lhe ensinou uma lição básica: “A gente faz o que tem de fazer” —, seu senso de dever — além de estudar na universidade, onde consegue notas máximas, trabalha como garçom nas noites de sexta e sábado, suportando humilhações e gestos de anti-semitismo ―, sua ânsia de sempre fazer tudo certo e sua luta para manter-se coerente a qualquer custo apenas acarretarão desastres.
O pai, vítima de um medo infundado, passa a atormentar a vida do jovem. Diante da vigilância insuportável, ele muda de universidade e de estado, em busca de paz para os estudos, mas encontrará somente antagonistas. Do colega de quarto que não respeita suas horas de sono ao diretor da universidade, um fanático religioso que só consegue ouvir os próprios argumentos, passando pela jovem por quem ele se apaixona, cada uma das pessoas de seu convívio levará Marcus Messner a, gradualmente, sucumbir à insanidade que comanda as relações humanas.
Obstinado racionalista
Mas uma ponderação deve ser feita. Que racionalista é esse, que busca desesperadamente, a qualquer custo, a congruência de seus atos e dos de outrem? Olivia, a mulher que o enlouquece, lhe diz: “Você é tão intenso. Relaxe”. Mas ele responde: “Não sei como relaxar”; e reflete: “Embora o dissesse em tom jocoso e encabulado, era a mais pura verdade. Estava sempre exigindo algo de mim. Sempre querendo atingir um objetivo”.
Há um quê de irracionalidade nesse jovem tenso, ateu, despreparado para a vida a ponto de não conhecer um buquê de rosas. Ardoroso leitor de Bertrand Russell, o imaturo Messner enlouquece com a primeira e inesperada felação, apegando-se à namoradinha como se fosse a única mulher existente, naufragando diante do irresistível apelo dos sentidos. Em sua crença absoluta e infantil na razão, ele desconhece o quanto o corpo e seus hormônios podem se rebelar contra as idéias. E durante um desentendimento com o diretor da faculdade, será engolfado pela ira que, apesar de justa, o fará perder o controle sobre palavras e gestos.
Philip Roth parece, às vezes, sorrir desse obstinado racionalista, atordoado frente ao comportamento inconstante de Olivia, perplexo diante das imposições doutrinárias e do gregarismo artificial da universidade, pronto a fugir dos colegas desrespeitosos e da aparente loucura de seu pai. Um jovem que, apesar de seu comportamento e raciocínio rigorosos, só encontrará cada vez mais loucura, cada vez mais desagregação social.
A narrativa tem como pano de fundo a Guerra da Coréia, o que amplia o drama pessoal de Messner, que luta para não ser convocado. Mas o encadeamento vertiginoso dos fatos — que a mimese de Roth cria admiravelmente — mostra-se implacável: nenhuma das qualidades do jovem serve para evitar sua convocação; ao contrário, elas o levam à guerra. E essa é a formidável ironia de Roth: neste mundo, as grandes qualidades são desnecessárias. Ou melhor: a maioria medíocre as considera acintosas, impertinentes, quase obscenas.
Philip Roth não chega a defender a ataraxia, mas as perguntas que ele nos coloca ficam no ar: se uma inocente guerra de bolas de neve pode descair para gestos tresloucados de violência — o escritor usa bem essa imagem nas páginas finais do livro —, o que mais podemos esperar? Se uma brincadeira inocente conduz o homem à insanidade, então nada tem sentido — e todas as nossas atitudes são, na verdade, levianas.
O “triunfo” da razão
Desencontro após desencontro, enfrentando diferentes formas de intolerância, Messner deveria ter aprendido que a primeira importante lição da maturidade é não se levar a sério demais, pois “nossas escolhas banais, fortuitas e até cômicas conduzem a resultados” não apenas “desproporcionais” — como afirma o narrador que se incumbe de contar o final da história —, mas loucos, violentos, capazes de produzir uma guerra e condenar milhares de inocentes ao sofrimento e à morte.
Isaiah Berlin, que sempre fugiu da idéia mentirosa de que a razão triunfará definitivamente em algum momento da história, dizia que estamos condenados a viver em um “equilíbrio difícil”, precário, que deve ser reconstruído a cada manhã; e ensinava, com sabedoria: “Um mundo sem conflitos de valores incompatíveis é um mundo completamente além de nosso conhecimento”. Foi essa a lição que Marcus Messner não aprendeu, talvez por lhe faltar savoir-vivre, fleuma e uma boa pitada de humour. Racionalista radical, foi destruído pela ignorância dos que o circundavam e pela própria imaturidade, condenado a interrogar no vazio, sem encontrar respostas. Mais uma das incontáveis vítimas de Pandora.