A vil natureza humana

"A promessa" e "A pane", de Friedrich Dürrenmatt, exploram o caráter ambivalente da justiça e do crime
Friedrich Dürrenmatt, autor de A promessa e A pane
01/07/2020

Em coleções do teatro moderno mundial, o nome do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt é recorrente, ao lado de nomes como Ionesco, Brecht, O’Neill, etc. Seu nome soa familiar por esses trópicos, em especial por sua peça A visita da velha senhora, encenada eventualmente nos teatros brasileiros; contudo, quando se fala em edições traduzidas, há certa dificuldade em encontrar sua obra (embora muito menos que a de seu contemporâneo e conterrâneo Max Frisch). Ou seja: Dürrenmatt é menos lido que visto. Portanto, é muito bem-vinda a edição das duas narrativas A promessa e A pane.

Uma parte menos celebrada e popular, mas não menos talentosa. Em sua peça mais famosa, o autor expõe com sagacidade e sarcasmo o espírito hipócrita de Güllen, pequena cidade de altos padrões morais que não hesita muito em sujar as mãos num ato infame para salvar-se, cumprindo assim os requisitos impostos de uma antiga e agora próspera cidadã, outrora difamada. Vê-se por aí que o autor se concentra nos dilemas morais do coletivo humano e enxerga que, quando este é posto diante de uma situação extrema, tende a optar pela conduta menos íntegra, até mais instintiva.

Esse aspecto vem à mente quando em A promessa, romance que inicia o volume, testemunha-se a fúria de uma turba ensandecida, sedenta por fazer justiça com as próprias mãos contra um suposto infanticida, já sob custódia da polícia. Todos têm a certeza da culpa desse caixeiro-viajante, muito em função do caráter itinerante de seu ofício. Quando confrontados, porém, pelo comissário Matthäi, que num embuste os faz enxergar sua própria mediocridade judiciosa, riem-se uns dos outros, zombam-se mutuamente, balbuciam argumentos frívolos e acabam por, a contragosto, aceitar o trabalho técnico da lei.

Na obra, o eixo é esse crime e suas implicações naqueles que foram incumbidos de solucioná-lo, como o comandante Doutor H., que é também o narrador da história, contada durante uma viagem de carro a um escritor palestrante (presumivelmente o próprio Dürrenmatt) que acabara de o conhecer numa palestra cujo tema fora o gênero policial na literatura. Contudo, é o subordinado de Doutor H., o comissário Matthäi, o protagonista da história, e o foco da análise humana levada a cabo pela obra.

Profissional metódico, introspectivo e obsessivo, Matthäi se vê de súbito no centro dos fatos, designado temporariamente para lidar com a investigação (pois está de malas feitas, prestes a assumir uma promoção na Jordânia). A promessa, porém, feita aos pais da menina morta o impede de seguir adiante, assim como uma incômoda intuição de que o caixeiro-viajante não é de fato o culpado.

Tem início então uma caçada extraoficial (pois Matthäi não pode ser readaptado e o caso foi encerrado) cujas consequências serão realmente trágicas ao ex-comissário e aos que o cercam, mas que lançará nova luz aos fatos e à própria natureza da justiça e seus limites.

Dürrenmatt domina bem os maneirismos do gênero, magnetizando o leitor a essas páginas de uma prosa fluida e concisa. Contudo, essa não se destina a ser uma obra de gênero. Disto nos avisa seu subtítulo: Réquiem para um romance policial, o que é menos uma homenagem e mais um qualificativo irônico e certeiro.

O espírito desse romance se revela à medida que o leitor enfoca os principais personagens dela, Matthäi e seu comandante. Há uma oposição entre suas naturezas, embora ambos resguardem autêntico respeito entre si: o narrador é o arquétipo do oficial enfastiado, normativo e limitado; sua postura é protocolar, e não a de se entregar com paixão, ou com um prazer intelectual à “caça”. Matthäi, por sua vez, é também um profissional, mas menos ortodoxo: ele, por exemplo, não hesita em prometer a custódia de um ainda suspeito à turba enlouquecida se com isso puder alcançar seus fins (o oposto do prometido). É capaz de desenvolver laços afetivos com o único fim de “criar uma isca” para atrair sua presa.

Tal circunstância, aliada a outras tão bizarras que afrontam a verossimilhança, não apenas demarcam as diferenças entre um burocrata que se mantém nos limites da função e um oficial obsessivo e mesmo amoral, como também promove a reflexão sobre os limites da justiça e as consequências de transgredi-los, e aceitar o resultado (que pode ser incalculável), ou respeitar tais limites, não promovendo a lei.

As pessoas esperam que ao menos a polícia saiba botar ordem no mundo, mesmo que eu não consiga imaginar esperança pior que essa (…) em todas essas histórias policiais se perpetra ainda um engodo (…) e não falo do fato de que seus criminosos sempre encontram a justiça (…) Trata-se das mentiras que preservam o Estado, como o piedoso ditado de que o crime não compensa.

Não só aqui reside o espírito da obra. Com Réquiem, Dürrenmatt soa irônico. Isso fica evidente nas inverossimilhanças propositadas, nas situações anticlimáticas e nas tergiversações narrativas que frustram ou impacientam o leitor, de que a prolixa fala da idosa já no fim do livro, importante para o desenlace, é o exemplo mais expressivo.

A promessa acaba sendo, guardadas as proporções, o que Dom Quixote fora para os romances de cavalaria, sem a intensidade filosófica de um Crime e castigo, mas com uma inquietação reflexiva que transcende o gênero.

A pane
Tratando também da natureza ambivalente da justiça e do crime, A pane é novela de gênio, suscitando uma gama maior de sentidos, devido a seu escopo mais amplo.

A premissa é simples: Traps, um caixeiro-viajante que ascendeu na vida, não obstante sua natureza medíocre e intelecto limitado, sofre uma pane em seu carro e vem a ser convidado a se hospedar numa residência da região em que se encontra, a convite de um idoso e seus três convidados octogenários; relutante a princípio, Traps aceita e toma parte de um banquete pantagruélico, regado a muito álcool, onde acaba por participar de uma brincadeira: o anfitrião e seus amigos, todos servidores aposentados do poder judiciário, propõem “julgar” Traps, no papel de um réu cujo crime, a ele inexistente, os convivas se predispõem a trazer à tona.

O ambiente cordial e a simplicidade do “réu” propiciarão suas confissões de uma vida adúltera — inclusive como amante da esposa do patrão — bem como métodos pouco honestos para crescer socialmente. Nada que pertença à esfera criminal, contudo o julgamento que se desenrola não é um rito processual comum…

Não é apenas no insólito da situação que se antevê a influência kafkiana, mas também no sentimento primordial da culpa humana; é na mente que o tribunal está instalado, e do julgamento de natureza moral nenhum homem sai inocente.

Porém, como já dito, o escopo da obra vai além desse aspecto:

O réu envergonha-se, não quer admitir seu ato, esquece, reprime-o da memória (…) carrega o fardo dos sentimentos de culpa exagerados e não confia em ninguém, nem mesmo em seu amigo paternal, o advogado de defesa, o que justamente é a atitude mais equivocada, pois um defensor de verdade ama o assassinato, fica extasiado quando lhe trazem um.

Se A promessa enfoca a esfera policial, A pane investiga o poder judiciário e sua estrutura, formada por homens não tão diferentes do “réu”, mas que se extasiam no exercício intelectual de julgá-lo; no fim, todos compartilham a vil natureza humana.

Dürrenmatt suscita essas e outras questões com uma prosa clara e simples, sem abrir mão de uma refinada expressão que a dupla tradução, de Petê Rissatti e Marcelo Rondinelli, se encarrega de manter. A edição evidencia seu cuidado no aspecto mais exterior: a capa é reprodução de uma pintura do autor, artista multifacetado que era.

A presente edição vem atualizar a presença de Dürrenmatt por aqui. Espera-se pelos próximos passos dessa importante empreitada editorial.

 

A promessa e A pane
Friedrich Dürrenmatt
Trad.: Petê Rissatti e Marcelo Rondinelli
Estação Liberdade
224 págs.
Friedrich Dürrenmatt
Filho de um pastor protestante, nasceu na pequena cidade de Konolfingen, na Suíça alemã, em 1921. Influenciado pelo teatro épico de Bertolt Brecht, escreveu sua primeira peça, Es steht geschrieben [Está escrito], aos 25 anos. A partir da década de 1950, com obras como O juiz e seu algoz (1950), A suspeita (1951) e A visita da velha senhora (1956), marcou seu nome entre os principais autores de seu país. Dedicou-se também à gravura e à pintura. Morreu em 1990.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

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