Em coleções do teatro moderno mundial, o nome do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt é recorrente, ao lado de nomes como Ionesco, Brecht, O’Neill, etc. Seu nome soa familiar por esses trópicos, em especial por sua peça A visita da velha senhora, encenada eventualmente nos teatros brasileiros; contudo, quando se fala em edições traduzidas, há certa dificuldade em encontrar sua obra (embora muito menos que a de seu contemporâneo e conterrâneo Max Frisch). Ou seja: Dürrenmatt é menos lido que visto. Portanto, é muito bem-vinda a edição das duas narrativas A promessa e A pane.
Uma parte menos celebrada e popular, mas não menos talentosa. Em sua peça mais famosa, o autor expõe com sagacidade e sarcasmo o espírito hipócrita de Güllen, pequena cidade de altos padrões morais que não hesita muito em sujar as mãos num ato infame para salvar-se, cumprindo assim os requisitos impostos de uma antiga e agora próspera cidadã, outrora difamada. Vê-se por aí que o autor se concentra nos dilemas morais do coletivo humano e enxerga que, quando este é posto diante de uma situação extrema, tende a optar pela conduta menos íntegra, até mais instintiva.
Esse aspecto vem à mente quando em A promessa, romance que inicia o volume, testemunha-se a fúria de uma turba ensandecida, sedenta por fazer justiça com as próprias mãos contra um suposto infanticida, já sob custódia da polícia. Todos têm a certeza da culpa desse caixeiro-viajante, muito em função do caráter itinerante de seu ofício. Quando confrontados, porém, pelo comissário Matthäi, que num embuste os faz enxergar sua própria mediocridade judiciosa, riem-se uns dos outros, zombam-se mutuamente, balbuciam argumentos frívolos e acabam por, a contragosto, aceitar o trabalho técnico da lei.
Na obra, o eixo é esse crime e suas implicações naqueles que foram incumbidos de solucioná-lo, como o comandante Doutor H., que é também o narrador da história, contada durante uma viagem de carro a um escritor palestrante (presumivelmente o próprio Dürrenmatt) que acabara de o conhecer numa palestra cujo tema fora o gênero policial na literatura. Contudo, é o subordinado de Doutor H., o comissário Matthäi, o protagonista da história, e o foco da análise humana levada a cabo pela obra.
Profissional metódico, introspectivo e obsessivo, Matthäi se vê de súbito no centro dos fatos, designado temporariamente para lidar com a investigação (pois está de malas feitas, prestes a assumir uma promoção na Jordânia). A promessa, porém, feita aos pais da menina morta o impede de seguir adiante, assim como uma incômoda intuição de que o caixeiro-viajante não é de fato o culpado.
Tem início então uma caçada extraoficial (pois Matthäi não pode ser readaptado e o caso foi encerrado) cujas consequências serão realmente trágicas ao ex-comissário e aos que o cercam, mas que lançará nova luz aos fatos e à própria natureza da justiça e seus limites.
Dürrenmatt domina bem os maneirismos do gênero, magnetizando o leitor a essas páginas de uma prosa fluida e concisa. Contudo, essa não se destina a ser uma obra de gênero. Disto nos avisa seu subtítulo: Réquiem para um romance policial, o que é menos uma homenagem e mais um qualificativo irônico e certeiro.
O espírito desse romance se revela à medida que o leitor enfoca os principais personagens dela, Matthäi e seu comandante. Há uma oposição entre suas naturezas, embora ambos resguardem autêntico respeito entre si: o narrador é o arquétipo do oficial enfastiado, normativo e limitado; sua postura é protocolar, e não a de se entregar com paixão, ou com um prazer intelectual à “caça”. Matthäi, por sua vez, é também um profissional, mas menos ortodoxo: ele, por exemplo, não hesita em prometer a custódia de um ainda suspeito à turba enlouquecida se com isso puder alcançar seus fins (o oposto do prometido). É capaz de desenvolver laços afetivos com o único fim de “criar uma isca” para atrair sua presa.
Tal circunstância, aliada a outras tão bizarras que afrontam a verossimilhança, não apenas demarcam as diferenças entre um burocrata que se mantém nos limites da função e um oficial obsessivo e mesmo amoral, como também promove a reflexão sobre os limites da justiça e as consequências de transgredi-los, e aceitar o resultado (que pode ser incalculável), ou respeitar tais limites, não promovendo a lei.
As pessoas esperam que ao menos a polícia saiba botar ordem no mundo, mesmo que eu não consiga imaginar esperança pior que essa (…) em todas essas histórias policiais se perpetra ainda um engodo (…) e não falo do fato de que seus criminosos sempre encontram a justiça (…) Trata-se das mentiras que preservam o Estado, como o piedoso ditado de que o crime não compensa.
Não só aqui reside o espírito da obra. Com Réquiem, Dürrenmatt soa irônico. Isso fica evidente nas inverossimilhanças propositadas, nas situações anticlimáticas e nas tergiversações narrativas que frustram ou impacientam o leitor, de que a prolixa fala da idosa já no fim do livro, importante para o desenlace, é o exemplo mais expressivo.
A promessa acaba sendo, guardadas as proporções, o que Dom Quixote fora para os romances de cavalaria, sem a intensidade filosófica de um Crime e castigo, mas com uma inquietação reflexiva que transcende o gênero.
A pane
Tratando também da natureza ambivalente da justiça e do crime, A pane é novela de gênio, suscitando uma gama maior de sentidos, devido a seu escopo mais amplo.
A premissa é simples: Traps, um caixeiro-viajante que ascendeu na vida, não obstante sua natureza medíocre e intelecto limitado, sofre uma pane em seu carro e vem a ser convidado a se hospedar numa residência da região em que se encontra, a convite de um idoso e seus três convidados octogenários; relutante a princípio, Traps aceita e toma parte de um banquete pantagruélico, regado a muito álcool, onde acaba por participar de uma brincadeira: o anfitrião e seus amigos, todos servidores aposentados do poder judiciário, propõem “julgar” Traps, no papel de um réu cujo crime, a ele inexistente, os convivas se predispõem a trazer à tona.
O ambiente cordial e a simplicidade do “réu” propiciarão suas confissões de uma vida adúltera — inclusive como amante da esposa do patrão — bem como métodos pouco honestos para crescer socialmente. Nada que pertença à esfera criminal, contudo o julgamento que se desenrola não é um rito processual comum…
Não é apenas no insólito da situação que se antevê a influência kafkiana, mas também no sentimento primordial da culpa humana; é na mente que o tribunal está instalado, e do julgamento de natureza moral nenhum homem sai inocente.
Porém, como já dito, o escopo da obra vai além desse aspecto:
O réu envergonha-se, não quer admitir seu ato, esquece, reprime-o da memória (…) carrega o fardo dos sentimentos de culpa exagerados e não confia em ninguém, nem mesmo em seu amigo paternal, o advogado de defesa, o que justamente é a atitude mais equivocada, pois um defensor de verdade ama o assassinato, fica extasiado quando lhe trazem um.
Se A promessa enfoca a esfera policial, A pane investiga o poder judiciário e sua estrutura, formada por homens não tão diferentes do “réu”, mas que se extasiam no exercício intelectual de julgá-lo; no fim, todos compartilham a vil natureza humana.
Dürrenmatt suscita essas e outras questões com uma prosa clara e simples, sem abrir mão de uma refinada expressão que a dupla tradução, de Petê Rissatti e Marcelo Rondinelli, se encarrega de manter. A edição evidencia seu cuidado no aspecto mais exterior: a capa é reprodução de uma pintura do autor, artista multifacetado que era.
A presente edição vem atualizar a presença de Dürrenmatt por aqui. Espera-se pelos próximos passos dessa importante empreitada editorial.