A última dança

Resenha de "Últimas palavras", de Christopher Hitchens
Christopher Hitchens, autor de “Últimas palavras”
01/03/2013

Christopher Hitchens, o cara que atacou Madre Teresa de Calcutá, apoiou Bush, comunista arrependido, homem culto, autor de grandes textos e de algumas besteiras, deixou seu testamento, suas últimas palavras, um tratado sobre o câncer e algumas referências culturais. O resto é incenso exagerado ou desconhecimento de causas, as culturais e as referentes à doença. Em Hitchens, câncer.

Últimas palavras não faz grandes referências à produção intelectual de Christopher Hitchens. Está mais para “cancer movie”, ou quem sabe o diário angustiado de um ser humano no corredor da morte.

Antes de prosseguir, permitam-me confessar minha descrença tanto em prêmios quanto castigos pós-morte. Sobre Deus, não discuto. Como discutir sobre o que não se comprova? Então, afastemos Deus e o politicamente correto, subproduto do medo do castigo, e sigamos.

Já que estamos com Hitchens, não deixe de ler Deus não é grande: como a religião envenena tudo, best-seller no qual o autor diz que não foi Deus que criou o homem, o correto seria afirmar que o homem inventou Deus. Estou com Hitchens nessa. Acrescento o adjetivo: mau.

Tenho medo da morte, traiçoeira chegada a um escândalo — fazer a vítima sofrer. E não tem nada a ver com eufemismo: ele nos deixou; fulano fez a passagem para uma vida melhor; ele não morreu, agora olha por nós. Escapismo atrelado a uma perigosa pirotecnia ilusionista. Morreu, acabou.

Mas o que fazer antes de morrer? Arriscar-se, por exemplo. Não retornar a casa e dizer “eu devia ter dito”. Hitchens, ao que parece, arriscou, não deixou nada por dizer. Muitos afirmam que chegou a falar demais. Provavelmente tenha partido de alguns, como ele costumava dizer, “ignorantes arrogantes”.

Alerta para a vida
Saudável leitor, prepare-se, pois o autor o levará para quartos de hospitais, o colocará ao lado da cama de um homem que já não consegue falar. Em suma, ele, mestre-sala, fará a corte à porta-bandeira macabra. Dançar é inevitável. Aqui, se aceita qualquer forma de dança, inclusive escorregar. Mas, como dizem, a morte é coisa que mais cedo teremos que enfrentar: a de parentes, amigos e, no caso de Hitchens, a própria.

Eu já presenciei a obra da morte. Vi minha filha morrer, vida criança. Ela se despediu de mim. Presente de despedida é solidão. Depois chegaram os “burocratas do diagnóstico” para colocar a mão no meu ombro. Pior: em algum lugar daquele mesmo hospital a cena, com certeza, se repetia. Sem ensaio. Naquele momento, que me obrigava a envelhecer, o que eu mais precisava era dançar. Dançar com o futuro que não aceita vítimas. E eu que não sabia de nada fui empurrado pela crueldade da memória. Memória dói, é marca com ferro em brasa; história, você inventa.

Então, inocente leitor, saiba que tenho medo da morte e também a desprezo. Ingenuidade aguda é acreditar em vida após a morte.

Fica claro em Últimas palavras que Hitchens a desprezava, pois aproveitou a vida — em todos os sentidos, inclusive o etílico. Durante a leitura, um pensamento aflorou: como aproveitar a vida? Infelizmente, as pessoas costumam fazer planos quando estão doentes. Algumas hospitalizadas, padecendo de doenças graves, planejam viagens, mudanças de hábitos. Por que a sombra da morte se faz necessária a essas pessoas? Sem pensar na morte, não conseguimos valorizar a vida, é isso?

Hitchens aparentava ser diferente, embora pareça confundir o aproveitar com o atacar. Um tipo Paulo Francis. Para quem ainda não sabe, Paulo Francis era um tipo, um personagem. Paulo tinha humor, Hitchens transpirava fel. Você argumentará que era um erudito. Digamos, com muita tolerância, que sim. Mas isso é salvo conduto para empunhar armas?

“O que não mata me fortalece”, geralmente atribuído a Nietzsche (embora alguns jurem de pés junto que o autor é Goethe), serviu como guia a Hitchens até o câncer se estabelecer. Passou a discordar após a primeira sessão de quimioterapia. Hitchens teve câncer de esôfago e alguns de seus desafetos desejaram que a doença chegasse à boca.

(…) um dos clichês mais atraentes de nossa linguagem. Vocês já ouviram. As pessoas não têm câncer: elas são apresentadas como estando em lutas contra o câncer. Ninguém que o queira bem omite a imagem combativa: você pode vencer isso. Ela está até mesmo nos obituários dos derrotados pelo câncer, como se alguém pudesse de alguma forma razoável dizer que eles morreram após uma longa e corajosa luta contra a mortalidade. Você não ouve isso sobre aqueles que sofreram muito tempo de doença cardíaca ou falência renal.

E no oitavo capítulo, de fragmentos, o autor diz: “Não estou lutando ou batalhando contra o câncer — ele está lutando contra mim”.

Corajoso leitor, você não encontrará comiseração, sentimentalismos baratos, medo, essas características identificadoras do terreno árido da morte e das religiões. Últimas palavras pode ser lido como um alerta: a vida é um sopro, o ser humano é mau, há bispos pedófilos, etc. Não sou amargurado, mas sei muito bem que o ser humano é afeito a traições e ilusões, meus cúmplices são meus óculos e um autodesprezo que cultivo dia após dia. A vaidade é máscara que se amolda às feições do idiota.

Leia sem medo o relato oncológico de Hitchens, o sol está uma maravilha, o mar da Prainha em sua rudeza suave, oito horas e trinta minutos. Fui… Fui porque a vida é agora.

Últimas palavras
Christopher Hitchens
Trad.: Alexandre Martins
Globo
96 págs.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho