A trajetória de um gênio

Jeanette Rozsas lança romance biográfico instigante sobre Franz Kafka
01/12/2009

Kafkiano é um adjetivo que, para uns, pode sugerir absurdo, para outros, a tradução do imponderável; há quem, ao ler ou ouvir o adjetivo, lembre de possíveis corredores sem fim da burocracia nonsense, burocracia tão presente que está, direta ou indiretamente, na vida de todos os humanos nesta contemporaneidade. Talvez kafkiano remeta à burocracia pelo fato de Franz Kafka (1883-1924) ter atuado em serviços burocráticos, e metáforas da burocracia terem sido eternizadas em algumas de suas obras, como em O processo, romance que começou a ser escrito em 1914. A mera pronunciação do sobrenome Kafka é um enigma: quem foi esse sujeito que escreveu obras tão radicais, sedutoras, enigmáticas obras-primas, quem foi ele?

A romancista e, a exemplo de Kafka, advogada Jeanette Rozsas responde no livro Kafka e a marca do corvo quem foi ou quem pode ter sido o autor checo que escreveu em alemão algumas das mais importantes obras da história da literatura mundial de todos os tempos.

O livro de Jeanette é apresentado como romance biográfico e, de fato, é tanto romance como biografia. É uma obra híbrida, misteriosa e indecifrável como foi Kafka. A autora realizou pesquisas, esteve em Praga, cidade onde Kafka nasceu e morreu; mas, principalmente, ela se apropriou de informações de livros de ficção e depoimentos do ficcionista e, após reflexões, escreveu esse livro instigante.

Kafka e a marca do corvo é uma obra instigante porque responde algumas dúvidas que os leitores de Kafka devem ter. Primeiro, Kafka não sofreu tanto como o consenso aponta, e mesmo a ignorância (a falta de informações) pode sugerir. Ele nasceu em uma família de posses, teve a oportunidade de estudar em bons colégios, leu todos os livros que a sua (imensa) curiosidade o instigou a ler, conversou e refletiu com colegas em cafés e, devido a um emprego que pouco exigia dele, conseguiu escrever muitos textos de ficção, todos brilhantes — basta ler Um artista da fome, O castelo e Josefina, a cantora, entre outros.

Jeanette narra a trajetória do escritor, recria eventuais conversas que ele teve com a família, com Hermann, o pai onipresente, com quem Franz nunca conseguiu dialogar durante toda a sua vida — é possível entender um pouco a respeito desse conflito lendo Carta ao pai. O embate com o pai afetou a vida afetiva de Franz que, durante quatro décadas, nunca conseguiu autonomia. Os relacionamentos que o escritor teve com as quatro mulheres com quem se envolveu foram mal-resolvidos. Ele parecia até invejar a auto-suficiência de Dora Diamant, que esteve ao seu lado nos dois últimos anos de sua vida.

Outro aspecto que Jeanette focou, e valorizou, foi a relação de amizade que Kafka cultivou com Max Brod. Amigo, que esteve ao seu lado em todos os momentos possíveis, Brod foi interlocutor, admirador e incentivador da prosa que Kafka escrevia e que o próprio escritor não tinha certeza se era de fato brilhante. Brod soube desrespeitar as ordens do amigo que, antes de morrer, pediu que seus textos fossem queimados.

Atleta
O texto de Jeanette é bom. É possível constatar essa excelência, por exemplo, no momento em que ela descreve a decadência física de Kafka:

O estado de saúde de Franz piora ainda mais. O cansaço, os ataques de tosse, as perdas de fôlego, a fraqueza intensa e o barulho, o terrível barulho que incomoda os ouvidos dos tuberculosos, fazem com que desanime de viver. Ele, que desde a juventude fora um bom esportista, não mais pode levar a vida de que sempre gostou, remando, nadando, fazendo longas caminhadas.

Kafka, ora direis, ouvir Jeanette Rozsas, foi um atleta quando era jovem. No entanto, depois que foi diagnosticado como tuberculoso, passou a não suportar mais ruídos, conversas, a voz humana em geral. Precisava do silêncio. Escrevia, então, durante as madrugadas. Chegou a morar em regiões rurais para poder escrever a sua prosa, que é um dos maiores legados da humanidade (e não há nenhum exagero nessa afirmação).

Em entrevista recente, Jeanette afirmou que o que mais a impressionou durante as pesquisas para a elaboração dessa obra foi a pessoa do próprio Kafka. “Ao iniciar os estudos, não imaginava que aquele menino franzino e tímido, o jovem medroso e problemático, fosse atingir as proporções que ele tomou no correr da pesquisa.”

A afirmação de Jeanette dialoga, e muito, com uma das aberturas de romance mais sensacionais da história da literatura: a primeira frase de A metamorfose, de Kafka: “Certa manhã, ao despertar de sonhos intranqüilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. Kafka, pelo depoimento de Jeanette, a partir do que ela constatou em suas investigações, também metamorfoseou-se: de um menino tímido rumo a um escritor de proporções gigantescas, capaz de romper tudo o que se fazia até então na escrita inventiva: a literatura, desde Homero, passando por Cervantes e outros, nunca mais foi a mesma depois de Kafka.

O absurdo da realidade foi tão magistralmente recriado por Kafka, que até esse absurdo parece ser mais interessante, e não tão sem sentido como é de fato, quando um leitor se depara com qualquer um dos magníficos textos do autor, por exemplo, O processo: “Alguém certamente havia caluniado Joseph K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”.

“Em checo, Kafka é corvo. Mas também poderia ser tuberculose”, observa o escritor Nelson de Oliveira, no texto de orelha dessa obra que ilumina um dos grandes nomes da arte. “Eu sei, mas sou azarão, não dou sorte”, diz Kafka, no romance de Jeanette. O gênio, também teria dito a Max Brod, a respeito de seu nome, carma, destino e castigo, as seguintes ponderações: “Já está no meu nome. Levo a marca do corvo, só que não passo de uma pequena gralha de asas aparadas. Alguma coisa tinha de sair errado. É Praga que não quer me largar. Essa mãezinha tem garras”.

Kafka e a marca do corvo
Jeanette Rozsas
Geração Editorial
184 págs.
Jeanette Rozsas
Advogada formada pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e procuradora em São Paulo. Atualmente, dedica-se exclusivamente à literatura: escreve contos, romances e roteiros. É integrante do Grupo Contares, com o qual publicou três coletâneas. São dela os livros Feito em silêncio, Autobiografia de um crápula e Qual é mesmo o caminho de Swann?.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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