A poética do horror

Preconceito, escravismo e genocídio no clássico "Coração das trevas", de Joseph Conrad
Ilustração: Oliver Quinto
01/08/2023

Conrad é um grande poeta descritivo em prosa.
Otto Maria Carpeaux

Os artistas costumam ser tremendos mentirosos, mas sua arte se for arte, não deixará de relatar a verdade de seu tempo. (…) Jamais confie no artista. Confie na obra.
D. H. Lawrence

Este título, A poética do horror, não é absolutamente contraditório? Poesia não é sobretudo beleza, forma, inteligência, uma das mais nobres criações da humanidade? Certamente que sim. O horror não é abjeção, rebaixamento, incapacidade, uma das mais degradantes imperfeições, ações ou pensamentos do ser humano? Temo que sim. Mas nada é tão simples assim. O objetivo aqui será uma tentativa de explicar esta contradição que, talvez, não seja exatamente uma contradição. Começo com duas citações, que apenas começarão a colocar o problema. A primeira é a do filósofo francês Bernard-Henry Lévy:

…todos pensam o mesmo. Todos os grandes. Todos os gigantes. Todos os que, aceitando se calar para deixar seus livros falarem, sabem que a arte não pode ter outro objetivo a não ser descrever o fundo do horror, da carnificina ou da catástrofe sobre a qual se desenrola desde sempre a aventura da humanidade.

A segunda é de Henry James, que escreveu:

o poeta, em essência, não pode interessar-se pelo ato de morrer. Mesmo que trate dos mais doentes dos doentes, ainda é o ato de viver que o atrai…  

O mal e a doença, quase sinônimos, neste contexto, são realidades humanas. Assim como, contraditoriamente, a beleza.

Sem lar
Filho de pai nobre, poeta, Joseph Conrad (1857-1924) nasceu em Berdychiv, Ucrânia, e escreveu mais de uma vez que “não existe o lugar que é o lar”. Polonês, nascido na Ucrânia, território pertencente ao império russo no século 19, na infância, foi deportado e exilado, com os pais, para a Sibéria. Morou na França, e trabalhou na marinha mercante francesa. Depois, na britânica. Uma pessoa sem pátria, desterrado. Quando se aposentou, começou a escrever romances, contos e novelas, em inglês. Vejam como ele descreve seu primeiro contato com a língua inglesa:

Pela primeira vez, realmente, em minha vida, ouvi alguém se dirigindo a mim em inglês — a língua da minha escolha secreta, do meu futuro, das grandes amizades, das minhas profundas afeições (…) de livros lidos, de pensamentos perseguidos, de emoções relembradas — dos meus verdadeiros sonhos!

Ilustração: Oliver Quinto

Falava o polonês, o russo, o francês e, depois, o inglês. Mais novo, enquanto morava na França, começou a escrever literatura em francês, mas desistiu logo (em polonês, os seus leitores seriam muito escassos, foi o que deve ter pensado. Detestava os russos imperiais, que escravizavam seu país. Devia odiar a língua russa). Foi um bom europeu (Europa, segundo os especialistas, deriva de uma palavra semítica que significava, “trevas”, “escuridão”, palavras que vão ressoar poeticamente e muito apropriadamente, em quase todo Coração das trevas. Antecipando: foram os europeus os maiores praticantes do genocídio em escala mundial. Mas também os inventores da análise crítica e da democracia…).

Hoje é considerado um dos maiores escritores da língua inglesa (“se eu não tivesse escrito em inglês, não teria escrito absolutamente nada”). Nobre, conservador, disse certa vez que “aqueles que me leram sabem da minha convicção que o mundo (…) se assenta na ideia da fidelidade”. Apreciava e se guiava pelos valores da marinha mercante inglesa e do que achava ser os valores da Inglaterra imperial, honra, fidelidade, consistência, persistência, justiça.

Em 1890, foi empregado por uma empresa belga — que explorava o comércio do marfim — para comandar um navio no Rio Congo, e buscar um alto funcionário desta companhia, no interior do país, que conseguia as maiores quantidades daquele produto. Ele fez exatamente o combinado, mas o empregado morreu na volta. Maya Jasanoff (sua última biógrafa, em The dawn watch, Joseph Conrad in a global world) comenta:

Ele viu no Congo um regime europeu de apavorante ganância, violência e hipocrisia e deixou a África num estado de desespero psicológico e moral, para não falar das doenças somáticas e corporais que teve o resto da vida.

Doenças que terminaram por matá-lo.

Genocídio
O que estava acontecendo no Congo, naquele momento (1887/1907) foi resumido pelo alemão moderno W. G. Sebald (1944-2001), em Os anéis de Saturno:

Em toda a história do colonialismo, em grande parte não escrita, existem poucos capítulos mais sombrios do que a chamada exploração do Congo.

Dez milhões de congoleses morreram com esta exploração econômica: fome, variadas doenças, cabeças, braços e mãos decepados, todas as crueldades possíveis e imagináveis, etc. O filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903), contemporâneo da exploração congolesa e de Conrad, justificou o genocídio (não foi menos do que isso o que os belgas praticaram):

As forças que estão trabalhando o grande esquema de felicidade perfeita, não estão tomando conhecimento de sofrimentos acidentais, exterminam tais seções dos seres humanos que atravessam seu caminho. Seja ele humano ou bárbaro, o obstáculo precisa ser eliminado.

Até hoje o genocídio belga no Congo é lembrado como um exemplo paradigmático deste tipo de horror. O atual rei da Bélgica reconheceu tacitamente a responsabilidade do seu país:

Gostaria de expressar meus mais profundos pesares por estas feridas do passado. Na época do estado livre do Congo (1877-1907) foram cometidos atos de violência e crueldade, que ainda pesam na nossa memória coletiva.

Caleidoscópio narrativo
Conrad utilizou muitos detalhes da sua experiência pessoal no Congo, e a realidade apocalíptica que presenciou naquele país, naquele momento histórico. Escreveu que “a própria arte pode ser definida como uma tentativa insistente de representar, ou exprimir a mais alta justiça ao universo visível, trazendo à luz múltiplas verdades. (…) um romancista vive na sua obra”. Apesar disso, a literatura não é somente descrição da realidade tal qual a vemos, sentimos ou percebemos, embora seja isso também. Maya Jasanoff escreveu: “o que é um romance, depois de tudo, senão um trabalho da imaginação”. Realidade e imaginação, portanto. Conrad é definitivo: “um homem que publica o segredo da sua imaginação, realiza um rito religioso”.

Como Conrad organizou, ao mesmo tempo, a realidade que observara e aquilo que imaginara na sua novela? Através da sua técnica narrativa e poética, que ele vinha compondo e inventando aos poucos, e que aparece e transparece em Coração das trevas (1899) de uma maneira límpida, magnífica e precisa. Otto Maria Carpeaux, o grande crítico e ensaísta austríaco-brasileiro, analisa cirurgicamente sua técnica nesta novela alucinante:

Conrad abandonou a técnica do narrador onisciente. Adotou a narrativa indireta por meio de vários narradores fictícios dos quais (…) cada um só conhece parte da história total, narrando-a do seu ponto de vista.

Temos, portanto, em Coração das trevas um narrador que eu chamaria de objetivo/participante/subjetivo, Marlow, que conta a maior parte das aventuras narradas no livro. Narrador na primeira pessoa, Marlow dá a palavra e ouve outras pessoas, que vão discorrer sobre Kurtz, suas ideias e suas práticas.

O que temos, então, é um caleidoscópio (ou feixe) de narradores, que se completam e ao mesmo tempo contradizem a narração principal, tornando-a singularmente rica, complexa e contraditória. Uma polifonia de narradores e narrações. Detalhe significativo: não é Marlow que inicia a narração de Coração das trevas, mas um amigo (não identificado), que está num barco, no Tâmisa, perto de Londres, e que fala sobre Marlow, que imediatamente passa a contar suas aventuras no Congo, para um grupo de pessoas que estão com eles.

Um dos efeitos surpreendentes desta técnica narrativa e poética de Conrad é que o personagem mais importante da novela, Kurtz, só aparece no final do livro e morre pouco depois. Sua presença concreta na obra é curta e resumida, mas poderosa e aterrorizante. Mas está presente o tempo todo, nas falas de outras pessoas, sobre o que fazia, e como. Refratando os pontos de vistas narrativos, Conrad nos dá não apenas uma realidade, mas várias. Carpeaux:

O caminho para transformar estas experiências em arte é a sua técnica do romance. (…). A sua literatura é a tentativa desesperada de iluminar as trevas, para pôr em ordem o caos.

Mas a imprecisão dos vários narradores, suas parcialidades e dúvidas, sugerem que nós, leitores, completemos o que está faltando. Brian Eno, o músico pop, diz a propósito do trabalho do leitor, qualquer leitor:

Pare de pensar sobre obras de arte como objetos e comece a pensar sobre elas como alavancas para experiências. O que faz uma obra de arte boa para você não é alguma coisa que já está dentro dela, mas alguma coisa que acontece dentro de você.

Resumindo: uma obra de arte é a relação que cada um de nós tem com ela. Segundo Conrad, “uma obra de arte é muito raramente limitada a um sentido único, e não necessariamente tendendo para uma conclusão definitiva”.

Um paralelo
Já no início de Coração das trevas, e praticamente durante toda a novela, Joseph Conrad traça um paralelo entre as trevas e escuridão em Londres, no Tâmisa, e aquela reinante na África, no Congo (Hannah Arendt vai falar, em Origens do totalitarismo, de “uma englobante escuridão que, no fim da novela, é mostrada como a mesma, em Londres e na África”. No fim e no início da novela, também). Maya Jasanoff concorda:

Colocando a experiência de Marlow dentro da narração da história na Inglaterra, Conrad advertiu seus leitores contra a noção complacente que o que aconteceu lá estava longe da civilização (…). O que aconteceu aqui e o que aconteceu lá estavam fundamentalmente conectados. Qualquer um poderia ser selvagem. Qualquer lugar poderia abrigar as trevas.

Conrad narra a Inglaterra, de dois mil anos atrás, invadida pelo império romano. Cito: “aqui [a Inglaterra] também foi um dos lugares tenebrosos da Terra. (…) as trevas ficavam aqui ainda ontem”. Esta longa descrição de uma região bárbara invadida pelos civilizados romanos é um primor de inteligência, concisão poética e verdadeira qualidade literária. E uma antecipação do que virá depois: o horror que os civilizados belgas (e outros europeus) fizeram no Congo. Poucos trechos darão uma ideia precisa:

Estava pensando nos tempos muito antigos, quando os romanos chegaram aqui pela primeira vez, mil e novecentos anos atrás — tão pouco tempo… Bancos de areia, pântanos, florestas, selvagens, muito pouco alimento que convenha a um homem civilizado, nada além de água do Tâmisa para beber… — frio, bruma, tempestades, doença, exílio e morte — a morte à espreita no ar, na água, nas matas. Devem ter morrido como moscas, aqui…. Eram homens capazes de dar conta das trevas. O desembarque num pântano, a marcha através das matas, e em algum posto do interior a sensação da presença da selvageria. A selvageria mais extrema se fechara à sua volta — toda aquela vida misteriosa e desconhecida que pulsa nas matas, nas florestas, no coração dos homens selvagens… Ele precisa viver no meio do incompreensível, que também é detestável. E tudo isso ainda tem um fascínio, que começa a atuar sobre ele. O fascínio da abominação — …Imaginem os remorsos crescentes, o desejo de fugir, a repulsa impotente, a rendição — o ódio… esses sujeitos, no fim das contas, não eram gente de muito preparo. Não eram colonos. A administração que exerciam, acho eu, era pura extorsão e nada mais. Eram conquistadores, e para isso basta a força bruta — nada de que alguém possa se vangloriar, pois a sua força não passa de um acidente produzido pela fraqueza dos outros. Eles se apoderavam de tudo o que podiam, sempre que tinham a oportunidade. Era simples roubo, assalto à mão armada, latrocínio numa escala grandiosa, e esses homens o praticavam cegamente — como convém a quem investe contra as trevas. A conquista da terra, que antes de mais nada significa tomá-la dos que têm a pele de outra cor ou o nariz um pouco mais chato que o nosso, nunca é uma coisa bonita quando a examinamos bem de perto.

Este trecho dá uma ideia perfeita do quão parecidos com a Inglaterra de sempre eram o Congo e os belgas. Inclusive com a Inglaterra de 1890 (a narrativa de Coração das trevas se passa nesta época). Neste exato momento, o Império Britânico estava no seu auge, e fazendo no mundo inteiro (Europa — não se esqueçam da Irlanda… —, Ásia, Austrália, Américas) quase exatamente o que neste livro é debitado aos belgas. Na outra ponta, dois mil anos atrás, ironicamente, segundo Marlow-Conrad, eles eram os “selvagens”, diante dos “civilizados” romanos…

Várias descrições do tratamento desumano dos trabalhadores negros, no Congo, estão presentes na novela. Como o primeiro contato de Marlow com o local aonde estes trabalhadores iam morrer, quando já não davam conta de continuar vivendo.

Estavam morrendo aos poucos — era muito claro. Não eram inimigos, não eram criminosos, não eram mais coisa alguma que fosse terrena — nada mais que sombras negras da doença e da fome, jazendo de cambulhada na penumbra verde. Trazidos de todos os recantos da costa com toda a legalidade dos contratos temporários, perdidos em terreno hostil, alimentados com comida estranha, adoeciam, tornavam-se ineficientes, e finalmente lhes permitiam que se arrastassem até ali para o descanso. Aquelas formas moribundas eram livres como o ar — e quase igualmente insubstanciais.

E Marlow comenta: “qualquer coisa — qualquer coisa pode ser feita neste país”. E estavam sendo feitas, segundo narra a novela, em vários momentos. Este poder de fazer “qualquer coisa” não nos lembra o mundo de hoje, e do Brasil recente? Essas descrições acuradas de um genocídio não lembra os muitos genocídios praticados depois deste, fomentado pelos belgas, genocídios em pleno séculos 20 e 21, pelos turcos (na Armênia), Alemanha nazista (judeus, comunistas, ciganos, homossexuais, esquerdistas em geral, pessoas com deficiências, etc., etc.), e para nossa vergonha, Brasil. O que o governo das trevas fez na administração da pandemia de covid-19 e com os povos ianomâmis? A resposta só pode ser uma…

E “qualquer coisa” foi feita principalmente por Kurtz (“toda a Europa contribuiu para a feitura de Kurtz”, está em Coração das trevas), aquele funcionário da companhia belga que conseguia mais marfim naquela região do que qualquer outro empregado. Como? Usando de todos os recursos possíveis e impossíveis, como é descrito repetidamente. Primeiramente, com uma ideologia benemerente, que Kurtz escreve num documento, falando de todas as benesses que a “civilização” poderia trazer aos “bárbaros” africanos: “pelo simples exercício da nossa vontade, podemos exercer um poder praticamente ilimitado para o bem”. Como quase sempre acontece, as boas intenções se transformam rapidamente no seu oposto — as pessoas passando diretamente da boa consciência para a pretensa verdade que os “civilizados” sabem mais e melhor do que os “bárbaros” o que é melhor para eles — e Kurtz termina seu texto, lido por Marlow, antes de o conhecer pessoalmente, com uma exortação surpreendente, e aterrorizante, mas coerente: “exterminem todos os brutos!”.

Na verdade, isso é exatamente o que ele e quase todos os belgas fazem nesta novela, e fizeram na realidade histórica: escravizaram os negros do Congo. Escravidão: algo que ainda existe (supreendentemente?), em algumas partes do mundo, e está muito em voga no Brasil atual: volta e meia são descobertos grupos de trabalhadores, em várias regiões do Brasil, em situação de escravidão, comandados por nossa gloriosa livre iniciativa.

Quase no final da novela — quando Marlow já encontrou Kurtz, e o está trazendo de volta —, ele está morrendo no barco.

Uma noite, entrando com uma vela, fiquei espantado ao ouvi-lo dizer, numa voz um tanto trêmula: “Estou deitado aqui no escuro esperando a morte”. (…). Fui tomado pelo fascínio. Era como se um véu tivesse sido rasgado. Vi surgir naquele rosto de marfim a expressão de um orgulho sombrio, de um poder impiedoso, de um terror abjeto — de um intenso e irremediável desespero. Será que ele revivia a sua vida em cada detalhe de desejo, tentação e abandono naquele momento supremo de conhecimento completo? E exclamou num sussurro, diante de alguma imagem, de alguma visão — exclamou duas vezes, uma palavra que era pouco mais que um arquejo: ‘O horror! O horror!

Será que neste momento Kurtz está percebendo o horror de sua vida, dos massacres, cabeças cortadas e exploração sem limites que realizou com profissional eficiência, ou será que está temendo o horror da morte? Como escreveu Brian Eno, cada leitor terá de descobrir dentro de si mesmo o que teria acontecido neste momento aterrorizante do personagem.

Um de nós?
Marlow descreve todos os horrores praticados por Kurtz. A propósito da relação entre Marlow e Kurtz, escreveu o ensaísta George Steiner:

Kurtz torna-se uma espécie de obsessão para o protagonista [Marlow], que não percebe que sua inquietação com o outro é, na verdade, a inquietação não reconhecida consigo mesmo.

Será que Marlow (e nós mesmos, seguindo o conselho, de Brian Eno), poderíamos dizer, ao final de Coração das trevas, como Conrad sobre Jim, na introdução de Lord Jim, “ele era um de nós”?

A adaptação
Talvez levado por algumas das célebres colocações de Joseph Conrad, mais especificamente por “minha tarefa é, pelo poder da palavra escrita, fazê-los ouvir, fazê-los sentir — e é, antes de tudo, fazê-los ver”, Francis Ford Coppola pensou que a adaptação desta novela para o cinema poderia ser uma boa ideia. Em poucas palavras — não vou discutir detidamente esta adaptação — não penso que o filme, Apocalypse now, pode, nem de longe, fazer ressoar as ideias que Coração das trevas tão inteligentemente agencia e propõe. E isso por algumas razões simples e fundamentais.

Ilustração: Oliver Quinto

Em Apocalypse now a desumanidade de Kurtz é estabelecida desde o início, pelos oficiais do exército americano no Vietnã, ao contrário da novela, em que ela é gradualmente desvendada. Quanto ao capitão Willard (o papel equivalente a Marlow, no filme), ele tem a missão de matar Kurtz. Na novela, Marlow tem a tarefa de resgatar Kurtz. Terceiro, a narração polifônica de Corações das trevas fica restrita ao testemunho quase monológico de Willard, em Apocalipse now.

O problema do filme de Coppola é a desumanidade e a loucura da guerra do Vietnã; a do livro de Conrad, os problemas são o genocídio, o escravismo, a exploração econômica dos belgas. A diferença fundamental é que, na novela, o imperialismo belga quer salvar o seu agente; no filme, o imperialismo americano (através de oficiais graduados do seu exército) resolve executar Kurtz, depois de se servir dele. Uma decisão “humanitária”, com muitas aspas, para evitar mais massacres dos vietnamitas? E problemas de imagem para os EUA? Tem mais: os belgas, na novela de Conrad, são simplesmente um exemplo a mais do colonialismo europeu da época e de todos os tempos (colonialismo inglês, francês, alemão, holandês, português, espanhol, e até mesmo italiano, vide a Abissínia…).

Na narrativa poética de Coração das trevas, o imperialismo belga é facilmente comparável, por extensão, aos outros imperialismos historicamente registrados (a comparação com os ingleses é claríssima). Qual outro imperialismo estaria fazendo uma guerra parecida a que os americanos faziam, na época do Vietnã? Os russos, no Afeganistão? Os americanos saíram corridos do Vietnã em 1975. Os russos invadiram o Afeganistão em 1979. Apocalypse now teve suas filmagens terminadas em 1977…

Narrativamente e poeticamente, portanto, se comparada à obra-prima de Conrad ponto por ponto, Apocalypse Now não se sustém. Mas, ao adaptar uma obra literária, qualquer diretor (e/ou roteirista) tem o direito de tentar fazer uma “outra coisa”, já que ele estará usando uma “outra” linguagem, a das imagens. O ensaísta (ou o crítico), ao analisá-la, teria que levar em conta os seus próprios objetivos (do diretor e/ou roteirista) e a consistência e relevância deles. O que não é o objetivo deste ensaio. Mas algo não pode ser negado: imageticamente, Apocalypse now dá uma ideia forte e relevante da tragicomédia que os EUA estavam encenando no Vietnã.

Ilustração: Oliver Quinto

A beleza
Para terminar, algumas palavras de Nietzsche, um filósofo contemporâneo de Conrad, que este conhecia, e que certamente o influenciou. E uma frase de Dostoievski, que Conrad detestava, mas relacionada diretamente a estes temas. Nietzsche: “a tragédia é o terrível sob a máscara do belo”. Ou como escreveu Roberto Machado, comentando-o, a tragédia “é a união de dois impulsos, das duas formas do dionisíaco da natureza [morte, doença, sofrimento?] e a beleza apolínea da arte [amor, amizade, forma?]”. Nietzsche: “tragédia é o dizer sim a vida mesma ainda em seus problemas mais estranhos e mais duros; a vontade de vida, tornando-se alegre de sua própria inesgotabilidade, em meio ao sacrifício de seus tipos mais elevados (…) para além do pavor e compaixão, ser por si mesmo o eterno prazer do vir a ser”. Conrad concorda: “o ser humano é sempre um vir a ser, ele não é propriamente nada. (…). Existe somente o dever de tentar, tentar eternamente, com nenhum compromisso com o sucesso”.

E também num texto tão afirmativo como o de Nietzsche, o que não é característico dele, Conrad: “esperança que une todos os homens a todos os homens, toda humanidade numa unidade superior, aqueles que morrem àqueles que vivem, aqueles que vivem àqueles que nascerão”.

Portanto, a tragédia seria o terrível sob a máscara do belo. Será que a tragédia é também o horror sob a máscara do belo? Dostoievski, em Os irmãos Karamazov (que Nietzsche admirava, e muito): “a beleza salvará o mundo”. Aqui, já estamos em plena poética do horror. A arte, qualquer uma, tem a capacidade de mostrar o horror, o terrível, o mal, sempre, ao analisá-los e entendê-los, portanto, desmontá-los (como faz, de uma maneira magnífica, esta novela). A arte e a beleza somente salvarão o mundo se, e somente se, descreverem o mal e o horror conjuntamente e através da beleza. Conrad: “eu, que nunca procurei na palavra escrita outra coisa senão uma manifestação da Beleza”.

Todas estas perfeições e imperfeições são, finalmente, humanas, demasiadamente humanas, como afirmava Nietzsche. Portanto, “a poética do horror”, esta contradição não contraditória, foi um dos feitos quase impossíveis, que Conrad realizou, e que cada grande artista tenta realizar, em cada obra-prima. Segundo Maya Jasanoff, “o livro de Conrad se transformou na referência obrigatória para pensar sobre a África e Europa, civilização e selvageria, imperialismo, insanidade – sobre a natureza humana”.

E sobre o preconceito, o genocídio, a escravidão e a exploração econômica. Conrad: “comecei a suspeitar que o objetivo da Criação não poderia nunca ser ético”.

Mário Alves Coutinho

asceu em Campo Belo (MG), em 1948. Graduado em Psicologia (PUC/MG), é doutor em Literatura comparada (Universidade Federal de Minas Gerais/Faculdade de Letras, com estágio na Sorbonne Nouvelle, Paris 3), com pós-doutorado pelo Departamento de Comunicação Social da UFMG.

Rascunho