A cultura do e-mail pode estar matando a prática do depoimento epistolar. A constatação é bastante acaciana, mas, na verdade, assistimos ao lamentável encerramento de um ciclo em que as pessoas abriam suas vidas a partir das cartas remetidas aos amigos.
A importância da prática pode ser medida, para não se estender em incontáveis exemplos, na ampla correspondência ativa de Mário de Andrade. Os vários livros produzidos com esses textos trazem um indispensável acervo de análise estética, além das inseguranças, medos e determinações de vários de nossos melhores escritores. Mário tinha a mutante capacidade de dialogar em tom variado com o iniciante Fernando Sabino, com o jovem amadurecido Carlos Drummond de Andrade e com o já senhor de todas as letras Manuel Bandeira. Daí a importância desse seu despretensioso trabalho.
Dois livros recentemente lançados, Cartas da biblioteca, de Guita e José Mindlin, organizado por Irene Paris Buarque de Holanda, e Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos Benjamín de Garay e Raúl Navarro, organizado por Pedro Moacir Maia, resgatam textos fundamentais de nosso cultura política e literária. E isso se deve à diversidade das Cartas da biblioteca e ao momento em que foram escritas as Cartas inéditas de Graciliano Ramos.
O livro pescado do vasto e precioso acervo da biblioteca de Guita e José Mindlin começa com uma carta escrita por Dom João IV, rei de Portugal, a Fernão Telles de Menezes, conde de Unhão, em 31 de agosto de 1647. No texto o rei informa do socorro mandado ao Brasil, na parte tomada pelos holandeses, e pede que se denuncie quem está colaborando com os invasores. Já o texto mais recente é um cartão postal de junho de 1996 onde a médica Nise da Silveira parabeniza o próprio Mindlin “por estar agora livre das engrenagens industriais da Metal Leve”, constatando que “sua vocação (de José Mindlin) é ser um gato de livraria, acomodado, feliz entre seus livros amados.”
Intimidade
A magia das cartas está na intimidade que elas transpiram. Quem as escreve pensa em um único e exclusivo leitor. Isso faz com que as opiniões saiam com mais honestidade e confiança, levando o autor a se deitar por fofocas e até erros grosseiros. Gore Ouseley, escrevendo em 1810 a um espião inglês, fala da fraqueza de Dom João VI e da feiúra e libidinagem de Carlota Joaquina, opinando ainda que “São Paulo, sem dúvida alguma, seria uma capital colonial muito mais apropriada do que o Rio de Janeiro”.
Outro diplomata inglês, Henry Stephen Fox, na carta que escreveu em 12 de abril de 1831 ao também diplomata Lord Stuart, é outro que se mete nas fofocas da corte ao falar de um Pedro I enfurecido, meio maluco e comilão à bordo do navio que o levaria de vez para a Europa. Ainda na sua visão, “a jovem Rainha transformou-se em um monstrinho gordo, sujo e feio”. No entanto mais grosseira ainda é sua incapacidade profética. “A regência, e o reinado de Pedro II, provavelmente não durarão seis meses, e depois virá a república”, escreveu. Pedro II governou o Brasil por cinqüenta e oito anos.
Aliás, as relações vivas de amores e ódios entre Brasil e Portugal são privilegiadas em muitos momentos do livro. Em um deles, Carlota Joaquina, em 29 de outubro de 1826, lutando pela permanência de Dom Miguel como rei de Portugal, escreve para sua filha Isabel Maria dizendo que “corre a notícia que o Pedro quer fazer deste Reino colônia mandando para aqui um Vice-Rei e que manda uma deputação vir buscar suas irmãs”. Pedro, numa batalha bem heróica, depõe seu irmão Dom Miguel e se faz Dom Pedro IV, rei de Portugal.
As fúrias das intrigas atingem o inquieto e desbocado Ramalho Urtigão que, escrevendo para Eduardo Prado em 1887, não poupa críticas à comunidade portuguesa que vive no Brasil.
A excessivamente celebre Beneficência Portuguesa é uma infecta fábrica de comendas e maus retratos a óleo e uma enfermaria péssima para alguns pobres desvalidos que pagam com os seus gemidos a vaidade de seus protetores.
Mas há também quem se deite de amores pelo Brasil, como Ferdinand Denis, um brasilianista francês que em 10 de dezembro de 1816, recém-chegado, descreve seu alumbramento para a mãe.
Estou em um país magnífico, mas tudo é excessivamente caro, com exceção dos produtos de nossa fabricação. Aqui, as artes são completamente negligenciadas, não aconselharia nenhuma artista a vir para cá, não faria nada. São os agricultores que podem progredir aqui.
E há nestas cartas a deliciosa convivência com literatos. Bernardo Guimarães reconhece uma dívida e a incapacidade de quitá-la, daí avisa ao seu credor que só lhe resta paciência para esperar. Casimiro de Abreu lembra que “a poesia não está sempre no número certo de sílabas; mas sim nas idéias”. Lima Barreto se inscreve para logo desistir de concorrer a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. E seguem-se vários momentos de graça e arte dos modernistas, a preocupação estética dos regionalistas e os cuidados lingüísticos de José Saramago e Ana Maria Machado.
Graciliano e os argentinos
A preocupação em deixar nos livros a exata precisão do que escreveu está revelada em praticamente todas as cartas escritas por Graciliano Ramos aos seus tradutores argentinos. Constantemente ele fala da péssima revisão dos livros editados e do cuidado que se deve ter com os termos regionais que usa. Chega mesmo a se oferecer para transpor para uma linguagem mais corriqueira os tantos termos regionais escritos em São Bernardo, que estava sendo traduzido com o nome de Feudo bárbaro.
As cartas reunidas foram recolhidas por mero acaso. Quando morava na Argentina, onde exercia um posto diplomático, o professor Pedro Moacir Maia, falecido no ano passado, recebeu a visita de uma filha de Benjamín de Garay. Oferecia uma série de cartas de escritores brasileiros para seu pai que, durante anos, foi o maior responsável pela divulgação da literatura brasileira na Argentina. Sonhou até em montar uma editora para publicar apenas autores brasileiros traduzidos. O projeto não foi adiante, mas as cartas estavam ali. Pedro tentou fazer com que a Biblioteca Nacional as comprasse, mas houve uma série de entraves burocráticos. Diante do impasse, o próprio Pedro adquiriu o pacote.
A importância maior dos textos, além do requintado humor de Graciliano, “as encrencas da vida me tornam selvagem, estou virando antropófago”, e de seu preciosismo literário, é a descrição da gênese de um dos maiores clássicos de nossa literatura, o romance Vidas secas.
Em constante dificuldade financeira, Graciliano, a pedido de Garay, escreve o que dizia ser um conto, Baleia. “Não sei se já lhe terá chegado um conto que mandei para El Hogar ou Mundo Argentino, uma história de cachorro. Seria magnífico se você pudesse meter isso em La Prensa, mas provavelmente esses senhores não gostam de bichos. A minha cachorra é um animal ordinário e cheio de peladuras” (13/05/1937). O próprio tradutor é que não se interessa pela cachorra, mas Graciliano se anima com ela e segue fazendo outros textos, ainda contos, com o mesmo tema. “Como vai minha Baleia? Trabalho numa série de contos regionais; quero ver se consigo fazer psicologia de bichos, cachorros, matutos, etc” (01/07/37). “A propósito: julgo que você não gostou da minha Baleia. É pena, pois não tenho nada melhor que essa cachorra. Quer ver os parentes dela? Se não quer, está acabado, não falemos mais nisso” (8/11/37). Finalmente, reunindo Baleia e seus parentes, Graciliano percebe que tem em mãos um novo romance fragmentado. “Este mês terei um livro novo, Vidas secas, de que você já conhece alguns personagens: Fabiano, a mulher, dois meninos e a cachorra Baleia. Creio que essa gente não lhe agradou. Mas não tem dúvida: mandar-lhe-ei o volume para você ver os meus bichos juntos” (Março/1938).
No mais é a visão pouco elogiosa que o escritor tinha de si mesmo. Mas a verdade é que Graciliano conhecia a plenitude de seu talento. Dizia-se um homem embrutecido, ao mesmo tempo em que falava das tentativas de humanizar, dar psicologia a uma cadela. E quem lê Vidas secas sabe muito bem que conseguiu a plenitude de seu intento.
E outra vez voltamos ao mérito das cartas. É o texto onde as pessoas se desnudam e dizem exatamente o que pensam, mesmo quando tentam se esconder pelos desvãos do humor, como fazia o velho Graça.