Vampiro cansado

Dalton Trevisan troca o sangue de veias dilatadas por chá e pão de queijo
Ilustração: Ramon Muniz
01/06/2004

Dalton Trevisan é um osso fininho de peixe na garganta de Curitiba; uma farpa embaixo da unha recém-cortada; uma pedra no sapato das moçoilas traquinas de coxas acesas; um vendaval a desgrenhar o penteado encharcado de laquê da madame a ciscar ao encontro do amante na alcova proibida. Não mata, mas incomoda. E como! Dalton desnuda Curitiba, suas gentes e hipocrisias há décadas. Faz aquela professora da Universidade suspirar sob a pele flácida do pescoço, desejosa de uma mordidinha do vampiro. O escritor frustrado o mira de esguelha, com a inveja a fustigar-lhe as teorias estranguladas no sovaco. Dalton caminha anônimo por uma Curitiba que se rende ao seu amor fantasiado de ódio, ironia e desprezo. A cidade o habita, os corpos são dilacerados por sua literatura e expostos na sala de jantar; alguns cheiram mal. Muito mal.

A relação visceral com a cidade iniciou-se em 1946, quando Dalton lançou Joaquim (revista literária hoje considerada de grande importância na história da literatura brasileira e que durante 21 números fez barulho nos telhados da província). Logo na segunda edição (junho/46), delicia-nos o texto Emiliano, poeta medíocre — versejador mais do que oficial de nossa terrinha, representante com procuração assinada em cartório para espalhar o Simbolismo por estas frias plagas. Ao melhor estilo dos jovens, ou seja, como um kamikaze a destruir moinhos de ventos no infinito da Patagônia, Dalton cravou as garras no escriba que hoje dá nome a uma rua no Centro da capital paranaense: “Emiliano Perneta foi uma vítima da província, em vida e na morte. Em vida, a província não permitiu que ele fosse o grande poeta que podia ser, e, na morte, o cultua como sendo o poeta que não foi”. Simplesmente uma adorável afronta aos curitibanos que ainda respiravam com soberba de pombo os versos do “príncipe dos poetas”, que tanto embalaram bailinhos e “quermesses” das mocinhas de canela grossa no início do século passado na cidade que ainda não era de arames e ilusão.

Ao destruir Emiliano — tão gentilmente situado “nos antípodas da verdadeira poesia, e cujos versos chinfrins não nos podem aproximar do coração selvagem da vida, apenas delas nos afastam (…), essa sua versalhada farinhenta de que o primeiro pé de vento já derruiu os castelos altíssimos”. E Dalton tinha razão. Quem hoje lê Emiliano Perneta e seus comparsas simbolistas? Que versos nos restaram a não ser alguns oficialmente pichados nas paredes do Farol do Saber, essas bibliotecas políticas nos bairros? Emiliano sufoca nas baforadas dos irados ônibus que pisam sua garganta a cada minuto na rua que lhe rouba o nome. Triste fim, meu caro poeta —, o jovem Dalton Trevisan, então com 21 anos, sinalizava o caminho que iria seguir: o de destruir a oficialidade de sua cidade, abrir brechas nas etiquetas sociais pregadas nos postes e bancos de praças e espalhar a alma humana e suas mazelas pelas fendas da orquestra desafinada. Assim o apresentou, assim o consolidou. Dalton é a cara do lado do avesso da Curitiba oficial e seus tentáculos de arames circulares. É o arquiteto que escancara o umbigo da cidade e vê a caraca nauseabunda de seus joões e marias. Dalton ama a Curitiba que ninguém quer despir, por vergonha das veias saltadas, das varizes a formar mapas medievais e das estrias volumosas.

Com carícias melífluas — características no amante ardiloso —, o escritor enfiou seus caninos nas veias de ti, cidade onde nem cair morto é graça divina, pois Dalton cantou em brados em Canção do exílio (Pão e sangue, 1988) “Não permita Deus que eu morra/ sem que daqui me vá/ sem que diga adeus ao pinheiro/ onde já não canta o sabiá/ morrer ó supremo desfrute/ em Curitiba é que não dá”. Como dói ter de cair morto nesta terra de pinheiros cansados! Enraizada em Curitiba, a literatura de Dalton Trevisan ganhou os caminhos do mundo, como já é mais do que sabido. Destruiu a sua aldeia para jogá-la no universo.

(Numa rápida passagem, pode-se afirmar que Dalton firmou-se como o grande contista brasileiro a partir do fim da década de 60 e começo da de 70, quando sua obra ganhou notoriedade com seguidas edições e traduções mundo afora. Seu primeiro livro por uma grande casa editorial é Novelas nada exemplares (1959), após anos imprimindo contos por iniciativa própria e distribuindo a amigos e críticos, além da publicação na revista Joaquim. Mas não é interesse deste texto traçar um amplo panorama da obra de Trevisan — tarefa um tanto inútil visto o grande número de ensaios, resenhas, dissertações e teses sobre o autor, e difícil neste exíguo espaço. A intenção, como se vê a seguir, é mostrar como a mordida do vampiro de Curitiba perdeu a força; o autor refugiou-se em sua obra e dela não mais consegue tirar o sangue da sobrevivência. Dá apenas voltas em torno de si e já não mais empolga os leitores contumazes. Com o seu mínimo mundo seduz novos leitores?)

Por que tão rápido?
Pode-se ler a obra de Dalton — composta por 28 livros — como um grande romance. A brevidade de seus contos (cada vez mais breves) é marcada pelo irônico humor das relações pessoais, principalmente aquelas sob os lençóis e à mesa de jantar. Ao adentrar um mundo desprovido de glamour e pompa — a desgraçada classe média baixa brasileira —, o autor simplesmente escolhe um caminho rico em possibilidades. É deste mundo que se alimenta o vampiro: a busca desenfreada e a impossibilidade do amor; o ódio travestido de amor e vice-versa; a hipocrisia das relações; a fragilidade dos vínculos familiares e tantos outros enlaces sociais já exaustivamente discutidos pela crítica. É claro que não podemos esquecer o homem e a relação com a cidade onde vive. Nestes núcleos, tece micropainéis que se entrelaçam o tempo todo.

A escolha pelo mínimo, pela exaustão das elipses, pelo lugar-comum, pela contenção na linguagem é marca indelével na obra de Dalton. Esta opção é, como se sabe, a grande cartada para colocá-lo no panteão dos grandes contistas brasileiros (não consigo vê-lo entre os maiores da literatura universal), ao lado de gente como Lygia Fagundes Telles, Luiz Vilela e Rubem Fonseca, para citar apenas três que aí estão produzindo. Mas o mínimo em Dalton parece ter se transformado em uma obsessão e, como toda obsessão, um tanto nociva. Dalton canibaliza-se. Corta-se aos poucos, vai deixando pedaços pelo meio da sala, pedaços pequenos, sem importância. Quase sempre risíveis.

Para analisar tal ferrenho apego ao mínimo do mínimo, nada melhor do que adentrarmos os 30 contos de Novelas nada exemplares. Aí está a essência da obra de Trevisan, e também os pilares que a sustentam até hoje. Tudo que dá sabor e força a seus contos está ali. Desde Pedrinho — que abre o livro com a frase: “O menino puxou a saia da mãe e queixou-se da dorzinha de cabeça” — até Penélope, que fecha o livro com “Abre a porta, pisa na carta e, sentando-se na poltrona, lê o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio”. O gosto de percorrer este livro está em descobrir que o mundo de Dalton abre-se e fecha-se o tempo todo. Estamos diante das mesmas histórias, dos mesmos personagens? Não, simplesmente estamos diante de nós mesmos. Conhecemos todas as histórias, convivemos com as mesquinharias, hipocrisias, rixas, tristezas, desilusões. A felicidade não existe; apenas passa de leve às vezes. E o que mais chama a atenção é que contos “longos” como A velha querida, O domingo e João Nicolau figuram como os melhores de Novelas, pois neles temos Dalton com força e espaço para movimentar-se, sem as amarras de um mundo que cada vez mais só pode ser visto pelo microscópio. Ali, o vampiro bate asas com desenvoltura.

Do outro lado da ponte está este recém-lançado Arara bêbada, com suas 101 ministórias. Ao prestar o mínimo de atenção à capa do livro, temos a certeza de que estamos entrando no universo daltoniano por excelência. Idealizada pelo autor, a capa traz desenhos do alemão George Grosz (1893-1959), como se fossem janelas e através da vidraça assistíssemos a pequenas cenas do cotidiano construído por Dalton. Estas ministórias, por mais paradoxal que isso pareça, são cansativas, sonolentas e risíveis. Descartáveis, pois já não mais acrescentam algo ao universo do autor. É apenas mais um livro, para ser lido ou esquecido, sem importância. Ou melhor, com muita importância para mostrar o quão desimportante é. Um pinguinho se comparado ao colosso de Novelas nada exemplares.

Recheado de piadas — algumas passíveis de pena —, Arara bêbada abre-se com Curitiba, em Canta, Curitiba:

— Curitiba quer que eu cante para ela.
— …
— E eu?
— …
— Eu quero antes que Curitiba cante para mim.

Se antes deliciávamo-nos com textos como Em busca de Curitiba perdida, Canção do exílio e Receita de curitibana, agora temos de nos contentar com pílulas genéricas que nem sempre aplacam ou intensificam o nosso mal-estar. Este Dalton não mais incomoda, apenas caminha com seus passinhos apressados desde a rua Ubaldino do Amaral, faz uma pausa para um rápido papo com o Rui, na Livraria do Chain, até chegar ao café Express, diante da pomposa (e nada mais) Universidade Federal do Paraná, onde nas tardes frias de Curitiba pede um bule de porcelana de chá e um pão de queijo. Corta-o em quatro pedaços e o come lentamente, em companhia de dois amigos. Hoje, a literatura de Dalton está mais para o senhor que corta o pão de queijo em quatro pedacinhos do que para o escritor — conta a lenda — que assediava as prostitutas do centro da cidade, atrás de combustível para seu imaginário.

Ao estrear com Novelas nada exemplares, em 1959, Dalton iniciou um processo inverso na literatura brasileira, tão assoberbada pela torrente de um João Guimarães Rosa e um séqüito de seguidores. Embriagou-se da concisa literatura do paranaense Newton Sampaio. O porre lhe fez um bem danado. Agora, nestas épocas em que experimentalismos se mostram cada vez mais pífios, ele dá voltas sobre si mesmo, dilapida-se para confirmar-se como o grande contista brasileira. Desnecessário. Já está no céu. Dalton é Deus, o resto são anjos tentando dar rasteira no Todo-Poderoso. Mas ao reduzir ainda mais o seu microcosmo literário — é claro que outros livros também se sobressaem pelo minimalismo, mas este Arara bêbada me parece emblemático, devido a sua fragilidade — Dalton parece ter desistido do novo leitor. Já não o preocupa mais ser lido por aqueles que querem descobrir a força de sua literatura. Aviso: iniciar-se na obra do vampiro por este Arara bêbada é decepcionar-se. Vá aos “velhinhos” das décadas de 60 e 70. É garantia de satisfação ou o seu sangue de volta.

Estas 101 ministórias passam a impressão (ah! impressionismos tão repudiados nos corredores acadêmicos; perdoem-me, senhores e senhoras) de que Dalton escreve apenas para seus seguidores, admiradores, que não são poucos. Contenta-se com o fã-clube de carteirinha (principalmente escritores), pois estes contos exigem um leitor demasiadamente ativo; com o silêncio a suplicar o preenchimento do leitor. Tudo fica no ar, pairando feito morcego ávido pelo sangue do animal no pasto. Isso é grandeza literária quando não torna a obra descartável, como é o caso aqui. Um exemplo é Diante do túmulo:

Diante do túmulo do velho bem-querido. Cabeça trêmula, a velhinha:

— E você? Por que ainda não me enterrou?

Silêncio do velho. Ela, zangada:

— Mas o que está esperando? (p. 14)

Alguém se arrisca? Podemos ficar horas e horas discutindo tal conto num banco universitário ou na mesa de um bar, mas, com certeza, sem relevância na obra de Dalton. É apenas mais um texto a compor um mosaico que está por demais acabado. Ainda há espaço para outras peças, mas estas de Arara bêbada são apenas de reposição.

Nem mesmo quando volta seus caninos para a sua sina — Curitiba — Dalton consegue sugar o sangue da pele clara das mocinhas da cidade, como se vê em Carnaval curitibano:

De gralha azul, Sete Quedas, araucária fala o samba, não dá ritmo, não tem rima.

São quatro na ala das baianas, cada uma com fantasia diferente, usada em anos anteriores.

Na exibição diante do júri a garoa fina murcha as plumas do destaque da escola Embaixadores da Alegria.

A odalisca de peito nu e roxa de frio desacata o fiscal: Qual é, cara? Nunca viu?

O público não canta nem dança, a mesma cara triste conservada em formol.

A rua é só cheiro de pipoca. (p. 101)

Para quem já leu frases do tipo “Curitiba das ruas de barro com mil e uma janeleiras e seus gatinhos brancos de fita encarnada no pescoço; da zona da Estação em que à noite um povo ergue a pedra do túmulo, bebe amor no prostíbulo e se envenena com dor-de-cotovelo; a Curitiba dos cafetões — com seu rei Candinho — e da sociedade secreta dos Tulipas Negras eu viajo” (Em busca de Curitiba perdida), este Carnaval curitibano é apenas um arremedo de Dalton Trevisan.

É claro que há bons momentos, como no conto O convidado:

— Moro só, mas não estou sozinha. Fim do dia, volto do trabalho, sou diarista. Requento a comida.

Antes de me servir, ponho mais um prato na mesa, com pétalas de flores em volta. E afasto a cadeira do convidado.

Esta noite achei a cadeira juntinha da mesa. Morreu alguém muito querido — e Jesus não pôde vir. (p. 10)

E ainda em textos como O cafifa, Pinga, O gato e mais dois ou três. O resto são piadas (algumas muito ruins) — leia algumas no box ao lado — e frases soltas, jogadas no papel como se fossem trocado que voa sobre a mesa para pagar o chá com pão de queijo.

Os exemplos se multiplicam, mas dois chamam a atenção em demasia. Ei-los:

A uma pergunta do médico, esclarece a mulher:

— Dói meio um pouco bastante. (O exame, p. 49)

Até que me digo, chateado:

— Ei, cara, não fale mais comigo! (Ei, cara, p. 69)

Vampiro cansado
A partir deste Arara bêbada, podemos concluir (?) que a obra de Dalton Trevisan mostra claros sinais de cansaço. Não empolga e não tem força para escancarar um mundo que sempre esteve sob seu domínio. Abre apenas pequenas frestas que não saciam a nossa ânsia. Olhamos pelas frinchas das janelas e vislumbramos joões e marias, cópulas e desilusões, sopapos e risadas. Fechamos a janela e os deixamos numa merecida solidão. Ao dar voltas em si mesmo, Dalton Trevisan parece um boneco de areia na praia — cada lambida do mar no fim de tarde arranca-lhe um pedacinho. Os fins de tardes são cada vez mais longos na sua literatura, que precisa tratar-se urgentemente do cansaço que lhe esfacela as estruturas.

Mas como este Arara bêbada é deveras descartável, descartemo-lo. Se a literatura atual de Dalton já não mais assusta, o conjunto de sua obra — principalmente em Novelas nada exemplares, Cemitério de elefantes e O vampiro de Curitiba — é um assombro que engasga Curitiba, faz a moçoila manquitolar e destrói o penteado da madame com volúpia ensandecida.

Uma pena que o vampiro agora prefira chá e pão de queijo a sangue e veias dilatadas!

Ilustração: Ricardo Humberto

As melhores piadas de Arara bêbada

Não é difícil encontrar piadas — algo muito diferente da ironia tão marcante na obra de Dalton Trevisan — em Arara bêbada. A seguir, algumas para deleite ou desespero de alguns leitores.

A mudinha
Na rua dois senhores pedem uma informação para a mocinha que passa
Ela se põe a gesticular muito agitada. Emite sons guturais, gemidos, gritinhos.
Os dois agradecem e um para o outro:
— Puxa que mudinha mais tagarela!

Quanta jóia
— Legal, vó. Quanta jóia bacana. Quando você morrer, deixa pra mim, né?
— Claro, filinha. É a minha neta do coração.
— E pra morrer, vozinha…
— Sim, anjo.
— …você não vai demorar, vai?

Escondido
O famoso Zezinho:
— Mãe, você tem pinto?
— Não. A mamãe não tem.
— Então como é que faz xixi?
— Bem… o meu pinto fica escondido.
— Que legal, mãe.
— …
— Deixa eu ver?

Na lanchonete
Diante da lanchonete, a menina para a mãe:
— Legal. Você pega um pastel e eu, uma coxinha.
Com lindo sorriso:
— Daí você me dá, né, mãe, uma mordida no pastel?

Arara bêbada
Dalton Trevisan
Record
109 págs.
Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho