A militância de Lins

Espírito arguto e honesto guiou a crítica poética de Álvaro Lins, num momento decisivo na literatura brasileira
Álvaro Lins por Tiago Silva
01/11/2013

O poema é mediação entre uma experiência original e um conjunto de atos e experiências posteriores, que só adquirem coerência e sentido com referência a essa primeira experiência que o poema consagra.
Signos em rotação, Octavio Paz

Ainda estudante comecei a admirar Álvaro Lins. Primeiro, pela dignidade com que ousou enfrentar a ditadura salazarista, pondo em jogo sua carreira de diplomata. Depois, pelas críticas contundentes, nas quais suas opiniões sempre prevaleciam sobre quaisquer cânones acadêmicos. Ao ler de novo Os mortos de sobrecasaca (Civilização Brasileira, 1963), tentei recolher algumas de suas idéias sobre poesia. Mais de meio século nos separa daqueles textos. É possível discernir pequenos desacertos em que autor porventura incorreu — seja porque na época ainda não havia o vasto cabedal teórico em matéria de crítica literária de que hoje dispomos, seja em razão do estilo contundente e franco, herdeiro de uma tradição humanística. Talvez por seu fervor político e literário tenha permanecido tanto tempo uma espécie de crítico “fora de moda”, observado como “impressionista”. No entanto, foi, com certeza, o crítico mais proeminente numa época das mais promissoras da literatura brasileira. Somente isso bastaria para motivar sua releitura por jovens críticos, como o fez recentemente Eduardo Cesar Maia, organizador de Álvaro Lins — Sobre crítica e críticos (Cepe, 2012). A partir de agora, a leitura de Lins passará a ser obrigatória para todos aqueles que se debruçam sobre a literatura brasileira do século que passou.

Liberdade intelectual
Os ensaios de Álvaro sobre poesia inseridos em Os mortos de sobrecasaca abarcam matérias sobre obras de vários poetas brasileiros. Nesse primeiro volume de sua trilogia crítica — os outros dois livros, publicados pela mesma editora, são A glória de César e o punhal de Brutus (1962) e O relógio e o quadrante (1964)—, ele selecionou vários de seus textos das décadas de 1940 e 1950. A primeira parte do livro, intitulada “Largueza de fronteira para a poesia moderna”, é dedicada à avaliação de obras de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Vinicius de Moraes, Thiago de Mello, Raul Bopp, Américo Facó, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Mário de Andrade, Ribeiro Couto, Jorge de Lima, Bueno de Rivera e Augusto dos Anjos. Alguns, diga-se de passagem, apenas se iniciavam na vida literária.

A firmeza e a liberdade com que Álvaro Lins se expressava foram características observadas por Georges Bernanos. Na correspondência que dirigiu ao crítico brasileiro, o escritor francês deixou expressa sua opinião:

Não vos agradeço pela vossa generosidade, mas por serdes tão perfeitamente e tão naturalmente o que sempre fostes, em cada linha que escreveis, ao mesmo tempo tão firme e tão vibrante, e, sobretudo, tão livre, tão verdadeiramente livre, de uma liberdade intelectual que sentimos ser a expressão de uma profunda liberdade interior que faltava tão lamentavelmente ao grande Saint-Beuve.

Essa liberdade interior, ressaltada por Bernanos, nunca faltou ao crítico brasileiro. Mas ele não a exercitou apenas no campo da crítica literária, pois era característica inerente à sua personalidade, e manifestou-se em inúmeros episódios de sua vida pública ativa e tumultuada.

De temperamento arguto e combativo, Álvaro Lins iniciou cedo a militância jornalística. Suas críticas literárias foram formuladas quase sempre em colunas de jornais (Correio da Manhã, Diário de Notícias), onde se manifestava, no calor da hora, sobre a produção literária do momento. Esses traços de sua personalidade contribuíram para que se tornasse um crítico respeitado, às vezes temido, pelos novos escritores, ao mesmo tempo em que se mantinha a relativa distância do mundo acadêmico, distância agravada pelas violentas investidas travadas contra ele por Afrânio Coutinho.

Esses traços de sua militância literária traduziam-se no constante interesse com que se dedicou à recepção de novos talentos, cuidando em apontar deficiências, a sugerir rumos aos novos, com uma dedicação quase pedagógica. Em contrapartida, armou-se de grande severidade quando apreciava a obra de escritores já consagrados — a exemplo de Jorge Amado, duramente criticado por ele —, em contraste com a relativa indulgência muitas vezes dispensada àqueles que apenas se iniciavam no ofício da escrita.

Poesia moderna
Muitos de seus textos preservam um espírito de época: “uma década mascarada de ambição transcendente”, no dizer de Emir Rodríguez Monegal, caracterizada por uma literatura marcada ideologicamente, tanto pela oposição entre os dois grandes blocos hegemônicos da época como pela vaga existencialista, que teve na literatura francesa seu principal lugar de origem. A essas características de ruptura agregava-se, como ele bem intuía, a necessidade de ultrapassar a herança do movimento modernista, que Álvaro Lins considerava morto há muito tempo. É subjacente às suas opiniões a idéia de que era preciso substituir um movimento de combate por aquilo que ele chamava um “movimento de realização literária”. Passada a agitação iniciada pela Semana de 22, a poesia moderna devia conter na forma adequada de expressão uma verdadeira substância poética.

Menos de duas décadas separam a publicação dos textos críticos de Álvaro Lins do momento de eclosão do movimento modernista brasileiro. Mesmo transcorrido tão pouco tempo daquele tumulto literário, ele não hesitou em declará-lo morto. O modernismo se extinguira, segundo ele, de uma “morte heróica e fecunda”, pois sem ele não teria surgido uma poesia rigorosamente moderna. E poesia moderna era, para o crítico, aquela que já ocupava toda a vida literária brasileira, caracterizada pela destruição de formas adotadas pelas escolas do passado, ao mesmo tempo em que nelas ia buscar e aproveitar tudo o que havia “de mais propriamente vivo, artístico e genuíno”. Assim, na sua visão, foi o movimento modernista que possibilitou a revolução e a ruptura, mas caberia à poesia que lhe sucedera — e tal como ele a concebia — oferecer continuidade dialética aos movimentos poéticos do passado.

Assim, o autor de Os mortos de sobrecasaca não caracterizava o que ele denominou “poesia moderna” como o simples repúdio às formas poéticas tradicionais, mas, sobretudo, pela ausência de limites e por ter adotado o símbolo como “fundamento expressional”. Ela realizava a união do “verdadeiro simbolismo” com aquela aptidão para atingir a liberdade herdada dos românticos, mas “numa esfera muito mais larga e muito mais ampla”. Por isso, quando invocou o conceito de “verdadeiro simbolismo”, frisou não se referir àquela “escola literária de nórdicos, de brancos por excelência” adotada por Cruz e Souza, que bem poderia ter sido, segundo ele, o “intérprete da poesia negra”.

Sua idéia sobre “poesia moderna”, embora não tenha sido claramente elaborada, intuía aquela dimensão que seria explicitada por Claude Esteban quase três décadas depois, ao analisar a obra de Gaston Bachelard em Critique de la raison poétique. Argumentou o escritor francês que, apesar das afirmações do autor de Psychanalyse du feu, o poeta não é apenas um “fazedor” de palavras, mas “um inventor de sentidos”. Sob as teias da construção poética para a qual o autor consagra todo o seu ser, unem-se intuição e consciência, história e elementos da realidade imediata. A redução da poesia a um acontecimento lúdico ou simples “trampolim para o sonho” seria a negação de que o poeta é aquele que “enraíza nas palavras a confissão de uma finitude e a história dos inconciliáveis”.

Foi certamente com essa idéia de considerar o poeta como “fazedor de sentidos” que Álvaro Lins analisou os livros de Carlos Drummond de Andrade e de João Cabral de Melo Neto, que anunciavam, na sua interpretação, o surgimento de uma poética nova no cenário literário do Brasil, com dimensão e características próprias.

Considerava ser o destino da poesia contrariar violentamente “os aspectos convencionais ou superficiais das coisas”. Ao analisar o livro de estréia de João Cabral, O engenheiro, afirmou, por exemplo, que para realizar alguma coisa de especial na ordem estética os poetas deveriam começar pela forma, rompendo com as fórmulas do passado. E enunciou o que era revolucionário: sem negligenciar a valorização da “essência poética”, cabia aos novos — entre os quais situava João Cabral — operar o restabelecimento de uma forma artística que não fosse simples herança da tradição parnasiana, mas o que ele considerava uma “evolução dentro do gosto e senso estético do nosso tempo”.

Incoerências
Dessa idéia de “poesia moderna”, muito mais intuída do que explicitada com clareza nos textos do crítico brasileiro, sobressaem certas incoerências no que diz respeito à forma como observou o trabalho de alguns autores criticados em Os mortos de sobrecasaca. É que diante de uma “poesia moderna”, que julgava estar empreendendo uma “espécie de exploração no tempo e no espaço”, ele reconhecia sua própria perplexidade: acreditava que os poetas brasileiros estavam próximos de uma grande descoberta, mas revelou não saber qual o destino dessa poesia. Quando, por exemplo, analisou as Cinco elegias, de Vinicius de Moraes, confessou, “sem constrangimento”, não ter qualquer impressão sobre o poema Última elegia, escrito, segundo ele, “numa língua particular, mistura de inglês e de português, com palavras ou jeito de arranjos gráficos de ordem meramente mnemônica”.

É, sem dúvida, louvável constatar essa humildade do crítico em reconhecer limitações diante de um poema que utiliza uma linguagem inusitada, numa atitude que reforça o respeito à honestidade de um intelectual de seu porte. No entanto, os recursos utilizados na confecção da Última elegia não constituíam novidade. Na literatura de língua portuguesa poderiam ter sido cotejados com aqueles utilizados em poemas como Manucure, de Mário de Sá Carneiro, ou mesmo com a Ode triunfal, de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), ambos escritos em 1915, ou seja, quase três décadas antes da publicação do livro de Vinicius. Além disso, era de se esperar uma maior atenção à experiência do autor de Cinco elegias, na sua tentativa de buscar aquilo que o próprio Álvaro Lins preconizava para o “poema moderno”, ou seja, uma substância poética expressa numa forma poética particular. Assim, pelo menos nesse caso, Álvaro Lins parece ter se furtado a examinar com maior empenho o “objeto que está em frente, fixo, estruturado: o texto, conjunto orgânico de sinais, o preto no branco, a mancha da página”. Para depois, segundo o conselho de Jacinto do Prado Coelho, poder “ir da estrutura ao significado profundo. Da estrutura à gênese. Dos estímulos aos efeitos”.

Além disso, já se observava, desde o final do século 19 e início do século 20, sobretudo na literatura francesa, a mutação da linguagem que desembaraçava a poesia da ditadura da métrica e tornava cada vez mais difícil discernir a fronteira entre poesia e prosa poética. O crítico francês Gérard Genette sugeriu que essa transformação poderia estar relacionada com o “enfraquecimento contínuo dos modos auditivos do consumo literário”. Ou seja, pelo abandono de critérios fônicos e a utilização de novos recursos de linguagem (sinais gráficos, jogos de palavras, intertexto, etc.), justamente aqueles aos quais Vinicius de Moraes recorreu para elaborar a Última elegia. O próprio Álvaro Lins estava ciente dessa mutação progressiva da linguagem poética e chamou a atenção para o fato de que os poemas em prosa de Rimbaud e de Baudelaire “estavam anunciando, prefixando talvez, a futura crise do verso, que é esta a que estamos assistindo”.

Ao escrever sobre Carlos Drummond de Andrade, que ele definiu, à época, como o poeta mais moderno do Brasil, Álvaro Lins registrou alguns traços característicos da poesia do escritor mineiro: “a economia de palavras, a concentração da poesia, o senso crítico, o amor à perfeição, o espírito de síntese, o desdém ante o supérfluo, a sobriedade ou a defesa contra o sentimentalismo e a eloqüência, o poder de identificar o essencial da inspiração poética”. O texto, intitulado Humor e poesia (1942), distancia-se — não apenas no tempo — de outro ensaio, datado de 1952 (Possibilidades formais do verso: o Enigma, de Drummond, e a Sextina, de Facó), no qual estima estar diante de uma revolução “no sentido da reconquista de maiores e melhores possibilidades para o verso” e sugere a adoção do poema longo, “com espírito épico”, aos moldes do que ocorrera com a poesia norte-americana de Phelps Putnam, Allen Tate e Archibald MacLeish. Sua referência maior passara a ser, então, o grande poema épico The bridge, de Hart Crane, a quem Vinicius de Moraes dedicaria O poeta Hart Crane suicida-se no mar.

No ensaio datado de 1952, Álvaro Lins trata exclusivamente do livro de estréia de Thiago de Mello, Silêncio e palavra. Comenta que o poeta amazonense teria “aristocratizado” com mestria a redondilha maior, usada tradicionalmente na versificação de língua portuguesa desde os mais remotos tempos da lírica trovadoresca. E critica o poeta por não “abandonar-se, ao menos algumas vezes, à embriaguez emocional” que poderia conduzi-lo a certo “dom de vidência”, ou seja, ao estado psíquico ao qual se refere Rimbaud na carta a Paul Demeny, escrita em 15 de maio de 1871, conhecida como Carta do vidente. Aqui, o crítico incorreu, a nosso ver, em dupla contradição. Primeiro, deixou subentendido que a poesia de Thiago de Mello carecia da substância poética que ele considerava fundamental na poesia moderna. Em seguida, reconheceu, implicitamente, que o autor de Silêncio e palavra utilizava formas poéticas clássicas, enquanto ele, Álvaro Lins, as tinha observado como “aristocratizadas”. Mesmo assim, pediu aos “poetas principais de nossa literatura moderna” um lugar, ao lado deles, para o recém-chegado autor.

Tal condescendência, no entanto, não foi reservada ao poeta Murilo Mendes. Num artigo de 1942, intitulado Murilo Mendes: O positivo e o negativo na originalidade, crítica ao livro O visionário, Lins tratou o autor como mero “portador” de poesia, mas que não gozava de “igual poder de transmissão”. Para ele, Mendes era poeta exclusivamente metafísico e sua poesia era incapaz de incorporar o real, além de não possuir “um possível equilíbrio de espaço e de tempo”. Quanto à forma poética, segundo ele, o automatismo supra-realista nela repercute, “tornando-a demasiadamente fria, simplificada e esquemática”. As linhas que se seguem resumem, a nosso ver, a opinião severa do crítico sobre o livro do poeta católico que se propunha, juntamente com Jorge de Lima, “restaurar a poesia em Cristo”:

Um caso realmente curioso, o deste poeta, que parece um tresvairado da poesia, porém ao mesmo tempo, com tamanhos poderes de inteligência e conhecimento literário. Dá-nos a impressão, com efeito, de que tudo esquece naquelas ocasiões em que se acha possuído de alucinação poética.

Aqui, a “alucinação poética” assume, como é possível observar, conotação contrária à que o crítico preconizou para o poeta Thiago de Mello, dez anos mais tarde.

Notas críticas
A propósito de Jorge de Lima, Álvaro Lins como que se desculpa por crítica anterior feita ao poeta de Invenção de Orfeu, cuja obra ele divide em três fases: parnasiana (do poema O acendedor de lampiões), regionalista e religiosa (esta última também denominada de mística pelo crítico Tristão de Athayde). Declara preferir a segunda fase, a regionalista, na qual se encontra “em toda a sua plenitude, o raro, o autêntico, o comovente poeta que é o Sr. Jorge de Lima”. E sua preferência recai especialmente sobre o poema Essa negra Fulô. No entanto, o crítico chama a atenção para certo “abuso de modismos, cacoetes e extravagâncias do modernismo”. E discorda do título (Poemas negros), porque não se tratava, na sua perspectiva, de poesia “genuinamente negra”, que ele entendia como aquela praticada nos Estados Unidos, onde o negro foi submetido a uma situação de isolamento, incomunicabilidade e perseguição.

A poesia de Mar absoluto, de Cecília Meireles, foi considerada pelo crítico como independente de qualquer corrente da poesia moderna, elaborada com maestria e beleza, mas com menor “substância de inspiração”. Para ele, nem a temática, nem o tratamento formal dos poemas eram originais. E confessa que os leu sem emoção, embora com admiração, destacando do conjunto apenas Os mortos e Elegia.

Quanto ao Mário de Andrade poeta, Álvaro Lins também o trata com rigor. O autor de Paulicéia desvairada representava o que o crítico considerava contradição própria da poesia moderna, ou seja, a de “um pensamento à procura de sua forma”. Para ele, no domínio da poesia, Mário de Andrade era mais uma personalidade do que um autor. Se ao poeta não faltava o sentimento íntimo do homem e da terra, soava falso o seu “brasileirismo” de intenção deliberada e de gosto duvidoso. Preferia a faceta lírica de Mário de Andrade, na qual se encontravam os poemas mais realizados, especialmente Improvisos do rapaz morto. No entanto, reconhece que se a poesia de Mário de Andrade não era “suficiente para transmitir uma idéia de todo o seu valor e de toda a sua importância dentro da literatura, oferecia, em seu conjunto, certa imagem da sua personalidade, um traço da sua história literária, um esboço do seu pensamento, da sua técnica e da sua figura de artista”. Essas observações foram retomadas, mais tarde, por Wilson Martins, no livro A idéia modernista (Topbooks, 2002), no qual comenta nosso desconhecimento sobre a obra de Mário de Andrade e seu “extraordinário polimorfismo”. A análise correta da obra do escritor paulista impunha ao crítico uma “submissão a essa complexidade”, conforme já havia sugerido Álvaro Lins com absoluta clarividência.

Drummond extraordinário
Ao apreciar a poesia brasileira de seu tempo, é Carlos Drummond de Andrade que ele elege como poeta maior, aquele que representava a verdadeira poesia moderna brasileira, por ter reunido as duas exigências que ele considerava fundamentais: a conjugação de uma verdadeira substância poética com a sua forma correspondente. Para o crítico, cada um dos poemas de Drummond traduzia um sentido, “um golpe de vista no interior das coisas, a surpresa de uma revelação”. Sem falsa modéstia, Álvaro Lins confessou ter entendido o sentido da poesia moderna e compreendido um “poeta moderno, difícil e complexo”, como o autor de Sentimento do mundo. A admiração de Lins pela poesia de Drummond chegou ao ponto de ele ter ido buscar na literatura inglesa — em William Drummond of Hawthornden, poeta do século 17 — o “lado do sangue” do poeta mineiro, responsável por aquela atitude de humour da qual surgiam as “deformações poéticas com que ele apresentou, muitas vezes, objetos e sentimentos, sob fisionomias quase irreconhecíveis”. O humour de Drummond foi observado como um “processo de deformação da realidade” que não nos fazia rir, mas sim nos levava a contemplar o espetáculo do próprio homem. Diferente foi o julgamento feito pelo crítico em relação ao humor de Mário de Andrade, considerado como exploração do pitoresco ou simples pilhéria. Esse aspecto da poesia de Drummond foi depois aprofundado pelo crítico Hélcio Martins, no ensaio A rima na poesia de Carlos Drummond de Andrade, no qual observa que a intenção humorística do poeta mineiro muitas vezes estava associada a um processo de criação de palavras, que “ora assume a forma de criação de significantes por sugestão de um significado ou de outro significante, ora de suscitação de significados pela suposta necessidade de atender, com significante respectivo, a uma correspondência rítmica”.

Sobre a arquitetura poética adotada por Carlos Drummond de Andrade, Álvaro Lins considerava que o soneto não era a forma adequada de expressão do poeta mineiro. Aqueles contidos no livro Claro enigma seriam meros exercícios poéticos, ainda que construídos com absoluta maestria. Drummond era observado como o poeta da estrofação livre, “indeterminada perante os cânones clássicos”. A leitura do poema Procura da palavra fez Álvaro Lins escrever que “o Sr. Carlos Drummond de Andrade está penetrando em reinos sucessivos da arte poética; vem desdobrando, de modo extraordinário, as suas experiências e possibilidades nos domínios das pesquisas de forma e construção poética”. Claro enigma era para Álvaro Lins um modelo do gênero por excelência, não havendo em nossas letras, segundo ele, arte poética que o superasse.

Crítica militante
Seus apontamentos sobre a produção poética das décadas de 1940 e 1950 do século passado foram feitos ao calor da refrega. Mesmo assim, revelam não apenas características de sua personalidade crítica, como também traços de suas concepções filosóficas — às vezes não muito claras — sobre as questões referentes ao fazer poético.

Se no ensaio Sobre alguns modos de ler poesia: memórias e reflexões o crítico Alfredo Bosi afirma que na academia nacional “nunca houve uma firme tradição de estudos de teoria do conhecimento”, é possível perceber em algumas passagens dos escritos de Álvaro Lins uma percepção dialética que demonstra, no seu caso, certa familiaridade com uma tradição filosófica de vertente hegeliana.

No ensaio citado, Alfredo Bosi refere-se a uma crítica atual, meio acadêmica e meio jornalística, que se expande no interior do campo de polaridade — “da eclipse do sujeito e da reivindicação de que só o sujeito empírico importa” — e é estimulada pelo mercado cultural. A crítica de Álvaro Lins teve também essa forma híbrida. Contudo, no seu caso, era instigada pelo compromisso histórico, por uma necessidade de apontar ao leitor os verdadeiros poetas daquele período que se seguiu à fase mais conturbada da literatura brasileira. E quase sempre acertou nas suas avaliações, muito embora feitas com freqüência ao toque de caixa dos jornais, sem os melindres que costumam afetar nosso pensamento crítico acadêmico. Quando essa postura concorreu para induzi-lo a cometer alguns enganos, não hesitou a corrigir-se logo depois, muitas vezes em atitudes de humildade. Seu espírito arguto e ao mesmo tempo flexível conformava-se à opinião tão bem expressa por Jacinto do Prado Coelho, de que “a história da obra literária nunca se pode considerar conclusa: até quando parece letra morta subsiste a hipótese dum renascer”.

As reflexões de Álvaro Lins não esclarecem muito sobre o que ele entendia por “poesia moderna”. Em alguns textos limita-se a considerá-la, conforme salientamos, uma perfeita conjunção entre substância e forma poética. Mas essa perspectiva é susceptível de distinguir a boa poesia de qualquer época. Não parecia ser de seu interesse permanecer no campo exclusivo da teoria literária. O que pretendia, a nosso ver, era exercer uma crítica militante e apoiar, na medida do possível, aqueles que travavam “a luta mais vã”, com a finalidade de penetrarem “surdamente no reino da palavra” (como se encontra explicitado no Procura da poesia, de Carlos Drummond de Andrade, o poeta de sua preferência).

A economia de referências a textos clássicos da teoria literária nos ensaios poéticos de Álvaro Lins confirma seu apego à crítica jornalística, de caráter mais imediato, voltado para a recepção de livros de poetas da atualidade. Não é de surpreender que nesse livro seja encontrado apenas um capítulo dedicado a um único poeta brasileiro do século 19: Augusto dos Anjos. Contraditório, como seu próprio tempo, ele não nos legou um cânone de importância fundamental, mas deixou para as futuras gerações uma opinião crítica que norteou, por duas décadas, escritores e leitores de um país que apenas iniciava seus primeiros passos em direção à modernidade. No ensaio Paixão crítica: Forma e história na crítica brasileira, João Alexandre Barbosa escreveu que Álvaro Lins e Sérgio Milliet foram, entre os anos 1940 e 1950, os críticos que exprimiram bem “a persistência de modelos naturalistas e impressionistas mais próximos da tradição”, e que Álvaro Lins revelou um dos impasses daquela tradição, “às vezes com admirável sentido para a função histórica da crítica, perdendo-se com freqüência na análise da poesia, dado o seu maior teor autonômico”. Essa pecha de “impressionista” que persegue a obra de Álvaro Lins, a nosso ver, apenas se acrescenta às suas qualidades de crítico. Mesmo porque, nem mesmo a Nova Crítica conseguiu “evitar questões de fundo impressionístico: aponta, na teoria, todas as mazelas da affective fallacy, mas, na prática, julga a obra (também) pelo seu efeito”.

Enquanto crítico do fazer poético, Álvaro Lins não foi o alquimista — na concepção de Walter Benjamin — a quem interessa apenas a chama que continua a queimar debaixo das cinzas como um espírito vivo. Mas tampouco foi o simples comentador que observava as lenhas do passado, as “leves cinzas do vivido”. Foi uma espécie de síntese dessas duas figuras metafóricas e, acima de tudo, homem de um tempo em que a crítica exigia mais do que o simples conhecimento das teorias em voga. Tempo em que, segundo João Alexandre Barbosa, a literatura se organizava “em sistema que se sustenta sobre os princípios de criação e transmissão de valores através das obras literárias”. Ou, como escreveu o poeta brasileiro que ele mais admirava: “tempo de partido, de homens partidos”.

Crítica e críticos
Org.: Eduardo César Maia
Cepe
244 págs.
Álvaro Lins
Professor, diplomata e crítico literário, nasceu em Caruaru (PE), em 1912, e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1970. Formado em Direito, desde os vinte anos trabalhou como jornalista, em veículos no Recife e, posteriormente, no Rio. Publicou seu primeiro livro, História literária de Eça de Queirós, em 1939, e recebeu diversos prêmios por sua crítica literária. Em sua obra, destacam-se A glória de César e o punhal de Brutus (1962), Os mortos de sobrecasaca (1963) e O relógio e o quadrante (1964). Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1955.
Everardo Norões

Nasceu no Crato, Ceará, em 1944. É autor de Poemas argelinos (Pirata, 1981); Poemas (Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 2000), vencedor do Prêmio Literário Cidade do Recife; A rua do Padre Inglês (7Letras, 2006); e Poeiras na réstia (7Letras, 2010), entre outos. Organizou a obra completa do poeta recifense Joaquim Cardozo (Nova Aguilar, 2010) e antologias (das quais também é tradutor) de poesia peruana, do mexicano Carlos Pellicer, do italiano Emilio Coco e de poetas franceses contemporâneos. Em 2011, seus poemas figuraram na Antología de poetas brasilenõs actuales, da editora espanhola Paralelosur. Seu livro de contos Entre moscas (no prelo) venceu o Prêmio Literário Cidade de Manaus 2011.

Rascunho