A matéria do tempo

Nas crônicas de "Antes não era tarde", o gaúcho Pedro Gonzaga trabalha bem com a nostalgia que o gênero sugere, capturando sensações e sentimentos
Pedro Gonzaga, autor de “Antes não era tarde”
01/02/2021

Se a matéria da crônica é o próprio tempo que se busca na memória para repensar o tempo, Pedro Gonzaga é um cronista exemplar no sentido da nostalgia que o ofício sugere. Ao menos é a impressão que deixa no leitor que passa pelas páginas de Antes não era tarde. Esse “antes” do título refere-se a qualquer tempo que não o de agora, que está em falta com a ordem do dia, algo que ficou definitivamente para trás, mas deixou rastros, sons, passos, cheiros, sombras.

Um exemplo capturado pela audição é o som da antiga máquina de escrever no belo texto Na nave. Ali, Pedro enxerga, ouve, a origem de tudo, ou seja, o momento em que o escritor percebe o nascimento do desejo da escrita — quando ouvia o som da máquina de escrever do pai ecoando pela casa; um som metálico e persistente que atravessava a noite, como se fosse o de uma pequena fábrica clandestina.

A máquina de escrever, muito mais do que um objeto funcional, transforma-se, na sensibilidade do cronista, em uma espécie de evocativo: “Creio termos perdido alguma coisa quando mataram o som das palavras no papel (…) eu também sou um assassino. O tempo converteu tudo em plástico nos teclados dos computadores, esterilizou qualquer ruído nas superfícies de vidro temperado”.

Decálogo
A memória faz o serviço de trazer de volta amizades antigas, campeonatos, lembranças de família, verões perdidos para sempre, as primeiras descobertas, os sabores, os tipos variados de saudade:

Alguém algum dia haverá de escrever um compêndio sobre as muitas formas de saudade.

a) Saudades que habitam o corpo.
b) Saudades de hábitos já perdidos.
c) Saudades de lugares.
d) Saudades de coisas e pessoas.
e) Saudades de ousadias.

Um dos textos mais interessantes e que merecem ser guardados por quem deseja começar o ofício de virar um dia escritor está na quarta parte do livro — De como alguém se torna um anacronista. Começa com os decálogos, espécie de mandamentos literários, tábuas da lei para o universo ficcional. São vários os autores que igualmente fizeram decálogos ou listas semelhantes. O decálogo de Pedro tem como objetivo estabelecer alguns critérios importantes para um cronista, que passa pelo entendimento sobre o próprio gênero: “A crônica é sobre a luta da criatura humana contra o tempo: o que se perde, o que se preserva, o que se transforma durante o combate. Os despojos desse combate, a isso chamamos crônica”.

No último tópico do decálogo, ele conclui: “Escreva sem pensar o quão perecível é o assunto da crônica. Abrace o problema da experiência humana, fonte do prazer da criação, que é, se tudo der certo, o próprio prazer da leitura também”.

Este pensamento é fundamental. Não se pode descartar um assunto por ser um tema que o tempo vai destruir. O tempo vai passar sobre todos os temas. Nada deixará de ser passado. Por isso, entender que a matéria da crônica são as marcas (sons, cheiros, sabores) que o passado deixa no ar é uma questão básica do gênero. O som da máquina de escrever, o gosto dos caramelos da infância, aquele cheiro do verão da juventude… São todos matéria-escombro que o cronista vai revolver, mas precisa estar atento, alerta.

Como Pedro escreve no texto Escombros: “Mas o que é uma crônica senão um contínuo revolver dos escombros, um arrancar alguma coisa do chão onde se misturam matérias vivas e mortas de séculos atrás e de ontem à noite?”.

As crônicas deste livro foram reunidas e selecionadas a partir da coluna quinzenal que o autor assina no jornal Zero Hora, entre meados de 2016 e 2019. Não entrou, portanto, nenhuma reflexão pós-pandemia, do interminável e inominável 2020. São matéria de um tempo mais remoto e nostálgico do que se imaginava. Resta saber como o autor reagirá, no futuro, aos escombros deixados pelo ano Covid.

Antes não era tarde
Pedro Gonzaga
Arquipélago
144 págs.
Pedro Gonzaga
Nasceu em 1973, em Porto Alegre (RS). Músico, professor, poeta, cronista, é autor, entre outros, de Cidade fechada, A última temporada, Falso começo e O nome da parte que não dorme.
Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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