Se a matéria da crônica é o próprio tempo que se busca na memória para repensar o tempo, Pedro Gonzaga é um cronista exemplar no sentido da nostalgia que o ofício sugere. Ao menos é a impressão que deixa no leitor que passa pelas páginas de Antes não era tarde. Esse “antes” do título refere-se a qualquer tempo que não o de agora, que está em falta com a ordem do dia, algo que ficou definitivamente para trás, mas deixou rastros, sons, passos, cheiros, sombras.
Um exemplo capturado pela audição é o som da antiga máquina de escrever no belo texto Na nave. Ali, Pedro enxerga, ouve, a origem de tudo, ou seja, o momento em que o escritor percebe o nascimento do desejo da escrita — quando ouvia o som da máquina de escrever do pai ecoando pela casa; um som metálico e persistente que atravessava a noite, como se fosse o de uma pequena fábrica clandestina.
A máquina de escrever, muito mais do que um objeto funcional, transforma-se, na sensibilidade do cronista, em uma espécie de evocativo: “Creio termos perdido alguma coisa quando mataram o som das palavras no papel (…) eu também sou um assassino. O tempo converteu tudo em plástico nos teclados dos computadores, esterilizou qualquer ruído nas superfícies de vidro temperado”.
Decálogo
A memória faz o serviço de trazer de volta amizades antigas, campeonatos, lembranças de família, verões perdidos para sempre, as primeiras descobertas, os sabores, os tipos variados de saudade:
Alguém algum dia haverá de escrever um compêndio sobre as muitas formas de saudade.
a) Saudades que habitam o corpo.
b) Saudades de hábitos já perdidos.
c) Saudades de lugares.
d) Saudades de coisas e pessoas.
e) Saudades de ousadias.
Um dos textos mais interessantes e que merecem ser guardados por quem deseja começar o ofício de virar um dia escritor está na quarta parte do livro — De como alguém se torna um anacronista. Começa com os decálogos, espécie de mandamentos literários, tábuas da lei para o universo ficcional. São vários os autores que igualmente fizeram decálogos ou listas semelhantes. O decálogo de Pedro tem como objetivo estabelecer alguns critérios importantes para um cronista, que passa pelo entendimento sobre o próprio gênero: “A crônica é sobre a luta da criatura humana contra o tempo: o que se perde, o que se preserva, o que se transforma durante o combate. Os despojos desse combate, a isso chamamos crônica”.
No último tópico do decálogo, ele conclui: “Escreva sem pensar o quão perecível é o assunto da crônica. Abrace o problema da experiência humana, fonte do prazer da criação, que é, se tudo der certo, o próprio prazer da leitura também”.
Este pensamento é fundamental. Não se pode descartar um assunto por ser um tema que o tempo vai destruir. O tempo vai passar sobre todos os temas. Nada deixará de ser passado. Por isso, entender que a matéria da crônica são as marcas (sons, cheiros, sabores) que o passado deixa no ar é uma questão básica do gênero. O som da máquina de escrever, o gosto dos caramelos da infância, aquele cheiro do verão da juventude… São todos matéria-escombro que o cronista vai revolver, mas precisa estar atento, alerta.
Como Pedro escreve no texto Escombros: “Mas o que é uma crônica senão um contínuo revolver dos escombros, um arrancar alguma coisa do chão onde se misturam matérias vivas e mortas de séculos atrás e de ontem à noite?”.
As crônicas deste livro foram reunidas e selecionadas a partir da coluna quinzenal que o autor assina no jornal Zero Hora, entre meados de 2016 e 2019. Não entrou, portanto, nenhuma reflexão pós-pandemia, do interminável e inominável 2020. São matéria de um tempo mais remoto e nostálgico do que se imaginava. Resta saber como o autor reagirá, no futuro, aos escombros deixados pelo ano Covid.