A lição do mestre

William Gaddis enfrentou como poucos a incômoda pergunta: “qual é o papel do artista na sociedade moderna?”
William Gaddis por Robson Vilalba
01/07/2012

We work in the dark — we do what we can —
we give what we have. Our doubt is our passion
and our passion is our task.
The rest is the madness of art.
Henry James, The middle years

Quando Jonathan Franzen der uma topada em algum paralelepípedo numa calçada de Paraty, durante sua visita na Flip, a festa literária internacional que colocou a pequena cidade carioca no mapa do mundo, poucos saberão que um espectro ronda a sua carreira de escritor — o espectro de William Gaddis, autor de The recognitions (1955), JR (1975), Carpenter’s gothic (1985), A frolic of his own (1994) e Agapē agape (2002), cinco livros que poucos leram, mas que jogaram uma sombra indiscutível em quem veio depois.

Franzen não está sozinho em seu comportamento. Todos os seus colegas devem alguma coisa a Gaddis — de Thomas Pynchon, passando por Don DeLillo e John Barth, até o compadre David Foster Wallace. A única diferença é que o autor de As correções (2001, um título que já mostra o quanto deve a The recognitions) e Liberdade (2011) escreveu a respeito da influência deste espectro e, como as histórias de Henry James nas quais um pupilo tenta superar o mestre, quer provar para si mesmo que o antecessor não é tão grande assim: segundo ele, Gaddis tinha seus defeitos e o próprio Franzen veio para resolver esses problemas, mesmo que isso implique esquecer completamente (ou em parte) a lição de quem desbravou a trilha[1].

Tal afirmação está no ensaio Sr. difícil (Mr. difficult), um título tão provocador quanto a coletânea que o reúne, Como ficar sozinho (lançado no mês passado pela Companhia das Letras). Para justificar a renúncia a uma herança que poucos têm coragem de negar, Franzen elabora uma tese que agrada a gregos e troianos, em especial àqueles que querem fazer sucesso com seus livros — em outras palavras, o pessoal que ganha a vida indo a festivais, participando de concursos literários e dando entrevistas com tamanho tempo que nos faz perguntar se eles encontram alguns minutos para fazer o que dá o seu sustento, i.e., escrever.

O argumento é o seguinte: existem os livros de prestígio, os “romances de status” (Status novels), que abarcam a realidade como um todo, estão recheados de enigmas e pedem um comprometimento do leitor que ninguém exigiria, nem mesmo a esposa mais impaciente e intolerante; e existem os livros de sucesso, os “romances de contrato” (Contract novels), que querem dialogar de igual para igual com o leitor, dando prazer e sofisticação em doses paliativas, buscando um compromisso, um contrato de direitos e deveres, uma espécie de “toma-lá-dá-cá”, que teria como resultado a satisfação garantida do cliente e dos amigos que o rodeiam. Franzen coloca como paradigmas deste último grupo autores como Edith Wharton e Charles Dickens, entre outros; e o grupo que representa o primeiro tipo de romance é composto por James Joyce, Robert Musil, Hermann Broch e — last but not least — William Gaddis.

Fracasso de vendas
De fato, Gaddis era um sujeito que prezava a dificuldade acima de tudo, até mesmo na vida pessoal. Nascido em 1922, publicou The recognitions em 1955, com apenas 32 anos. Era seu romance de estréia e tinha cerca de 956 páginas, um número que assusta o leitor até hoje. Antes disso, escreveu sátiras para o jornal The Harvard Lampoon, e foi fact-checker da revista The New Yorker. Viajou pela America Central e voltou do Panamá para os EUA em um barco repleto de bananas e fuzis para organizações de guerrilha. Ao desembarcar, tinha um manuscrito volumoso que ninguém queria editar. Teve de pagar do seu próprio bolso uma edição para a editora Harcourt Brace & Company. Quando o romance chegou às prateleiras, Gaddis estava pronto para ganhar o Prêmio Nobel. Recebeu 54 resenhas, apenas duas delas positivas, foi um fracasso de vendas e ninguém mais se lembrou dele pelos próximos 20 anos.

Isso não significa que tenha desistido. Durante esses anos, Gaddis se sustentou como podia: trabalhou para grandes corporações, como a IBM; escreveu memorandos e tratamentos para vídeos institucionais; redigiu discursos para candidatos a governador; tentou escrever uma peça de teatro sobre a batalha de Antietam, fato importante para a história da Guerra Civil americana; chegou ao ponto de elaborar artigos para um dentista em troca de um tratamento de canal. Pesquisou também um assunto insólito, sobre o qual ele parecia ser o único que mostrava interesse na época: a convergência entre tecnologia e arte, simbolizada pelo advento da pianola, instrumento que substituía o pianista em espetáculos públicos e que anunciava ao mundo o fato de que agora os artistas e os intérpretes não eram mais necessários.

Somente com a publicação de JR, em 1975, que o mundo se viu mais ou menos preparado para a sua literatura. Afinal, nesse meio tempo, já haviam sido publicados V. e O arco-íris da gravidade, de Thomas Pynchon; Don DeLillo começava a dar os primeiros passos literários; e John Barth provava que os jogos metalingüísticos podiam ser sucesso de vendas — enfim, tudo aquilo que Gaddis tinha feito em um único livro que poucos leram contagiava a indústria editorial como se fosse a nova tendência da moda[2].

Afinal, qual era a dificuldade que envolvia The recognitions e que faria Jonathan Franzen dedicar dois meses da sua vida a lê-lo como se fosse a subida do Everest — conforme ele explica em Sr. difícil? Não era apenas o número de páginas, muito menos a erudição que o romance exibia como um trunfo e que, no fim, revelou-se um dos motivos de seu fracasso com o público — uma vez que Gaddis não se intimida com referências a São Clemente (de onde vem o título do livro, já que o santo foi o suposto autor de um romance medieval chamado justamente Os reconhecimentos); gnosticismo; a lenda de Fausto; pintores da Baixa Europa como Bosch, Brueghel e Van Eyck; música clássica e contemporânea; além dos seus amados Dostoiévski e Eliot (e não, ele não tinha lido Joyce antes de escrever o romance como supunham; na verdade, segundo uma carta sua endereçada a um estudioso, datada dos anos 1970, “li apenas o monólogo de Molly Bloom em Ulysses, não por motivos literários e sim apenas lúbricos”). Tratava-se sobretudo de uma questão de atitude.

A trama principal deste livro impossível de ser resumido é uma busca fracassada. Seu herói é Wyatt Gwyon — a mania pelos nomes bizarros na literatura contemporânea não é uma invenção de Thomas Pynchon, muito menos de Martin Amis —, que, ansioso por ser um grande pintor, decide se aventurar pelo mundo das artes internacionais e sofre a sua primeira grande decepção quando um crítico simplesmente destrói os seus quadros, chamando-os de medíocres. Inseguro e atormentado, Wyatt é convencido por um sujeito chamado Recktall Brown (o talento de Gaddis para trocadilhos infames fica aqui evidente) a falsificar quadros de Bosch e Brueghel, e, graças ao seu talento ainda não reconhecido, faz imitações tão perfeitas que elas acabam sendo vendidas ao público como se fossem os originais.

Todavia, esta é apenas uma das tramas. A partir da história de Wyatt, Gaddis começa a montar um mosaico do vazio existencial que consome o mundo artístico do início do século 20. Além do pintor fracassado, temos Stanley, o músico que quer tocar a sua cantata no órgão de uma igreja prestes a ser demolida (mas ele não sabe disso); Otto, o dramaturgo que, como Gaddis, fugiu para América Central, escreve uma peça sensacional que ninguém lê porque todos acreditam que ela é um plágio do início ao fim; Esther, a esposa de Wyatt, que tira sarro de sua ambição e se vê envolvida com poetas medíocres que nada fazem exceto conversar sem parar em festas regadas a drogas e álcool; e Esmé, a moça que Wyatt acredita ser a representação da pureza em um cosmos decadente, mas que, na verdade, tem o suicídio como passatempo favorito.

Como se não bastasse, Gaddis vai de encontro às raízes do desespero espiritual desta situação ao retratar a crise de fé do pai de Wyatt, o Reverendo Gwyon. Ao perder precocemente a esposa Camila, Gwyon renega o presbiterianismo e decide ser um sacerdote do deus Mitra, uma das inúmeras divindades gnósticas que rivalizavam com a religião cristã na época dos primeiros padres da Igreja.

O leitor imagina que o recurso de histórias entrecruzadas pode deixá-lo maluco (e isso acontece de facto e de jure), mas não é apenas esta a razão da fama de The recognitions ser um livro difícil de ser lido. É também a forma como Gaddis decidiu narrá-lo: ao combinar uma narração enciclopédia em terceira pessoa com uma orquestra desafinada de vozes e outros cacoetes urbanos, o romance não faz apenas um painel da futilidade de seu próprio meio — afinal, seu autor é um escritor que sempre quis ser reconhecido entre seus pares, como todos nós —, como também prova que seus integrantes não passam de ruídos repletos de som e fúria.

A metáfora musical não é aleatória, pois revela a estratégia que Gaddis aplica em sua literatura e, por sua vez, as suas verdadeiras influências. Se ele despreza Joyce como modelo de “modernismo radical”, nem por isso deixa de ser menos ousado quando, por exemplo, inclui versos de Quatro quartetos em cada parte de The recognitions sem que o leitor perceba, ou então ao intitular a primeira parte de seu épico sobre falsificação “A primeira volta do parafuso”. Ao imitar T. S. Eliot e Henry James, Gaddis quer ouvir as vozes que estão escondidas nos ruídos e nas ruínas das grandes cidades — e mais: quer descobrir a falsidade moral que adormece debaixo e dentro delas.

Leitor a esmo
Ele levaria esta busca ao extremo em JR, outra fábula moral sobre a corrupção da inocência, desta vez não no mundo das artes, mas no das finanças. Partindo de um enredo implausível que só teria sentido graças ao engenho do estilo, seu segundo romance — desta vez só com 200 páginas a menos que o anterior, chegando ao número ainda exorbitante (para nossos padrões) de 756 folhas em letra miúda, espaçamento um, repleto de travessões, sem nenhuma narração em terceira pessoa, deixando o leitor a esmo em diálogos que só ficam claros quando lidos para si mesmo, no silêncio do quarto, em plena madrugada, de preferência gripado, sob efeito de remédios — conta a delirante odisséia de um rapaz de 11 anos (o personagem-título) que, sabe-se lá como, conseguiu um esquema milionário e se tornou um típico especulador de Wall Street da noite para o dia. E, de novo, tal eixo é apenas mais um motivo para contar a sua verdadeira história, a que realmente o interessa: a de dois artistas falidos, o músico Edward Bast e o escritor Thomas Eigen, alter-egos evidentes de Gaddis que sintetizam a sua vivência entre os meios corporativos durante os 20 anos em que teve de superar o fracasso de The recognitions.

Bast trabalha em uma escola dedicada somente a tirar de seus alunos o sucesso empenhado na mensalidade paga por seus pais milionários ou de classe média; quer escrever uma ópera ambiciosa, igual a O anel dos nibelungos de Wagner, mas da ópera vai para o concerto, do concerto vai para o quarteto de cordas, do quarteto vai para uma cantata e, no final do livro, quando sua vida parece estar completamente destruída porque os esquemas de JR ruíram o patrimônio da escola e, de quebra, da sua família de tradição quatrocentona, decide ficar com uma peça para uma voz só, talvez com algumas notas de uma flauta, para que não fique repetitiva. Já Eigen é um escritor que lançou há algum tempo um romance ambicioso que ninguém leu, trabalha como redator para o presidente de uma empresa gigantesca e não consegue terminar uma peça teatral sobre a Guerra Civil Americana — tormento que compartilha com outro amigo de mesma vocação, Jack Gibbs, que também se vê incapaz de dar continuidade ao projeto de sua vida, a redação de um tratado sobre a morte simbólica do pianista em comemorações públicas e sua substituição sobre a pianola como um meio mais “progressivo” e “democrático” de popularizar a música para as massas.

Mais autobiográfico, impossível. Contudo, isto não significa que Gaddis escreveu dois livros monstruosos para fazer reclamações ad infinitum — observação maliciosa que, aliás, Franzen faz em seu ensaio, inclusive acusando JR de sofrer desnecessariamente de uma espécie de “logorréia” provocada por constipação anal. Há um método na aparente loucura de seus romances. Ao criar uma muralha de vozes que, pouco a pouco, descobrimos que formam de fato um diálogo entre os personagens e também com o próprio leitor (que deve encontrar a melodia oculta que ninguém ainda sabe qual será), Gaddis pretende ir até as últimas conseqüências em relação à pergunta que seus queridos T. S. Eliot e Henry James conseguiram apenas esboçar: qual é o papel do artista na sociedade moderna?

Porque estamos saturados de vozes, saturados de melodias desconexas, de ruídos que não permitem mais ouvir o silêncio que deveria nos preservar de toda a correria do progresso tecnológico, não conseguimos mais escutar, se é que alguma vez nós já fizemos isso, a voz daquele que capta o que ninguém consegue expressar com os meios limitados que a linguagem humana apreende e rapta entre os nossos semelhantes. Esta voz é a do artista, do escritor, do poeta, do músico que passa por um treinamento, uma ascese, um árduo exercício, para controlar suas paixões, seus demônios interiores e assim transformá-los em um objeto singular, único, dotado de razão, ordem e proporção, sempre com a finalidade de que, uma vez em contato com alguém que possa compreendê-lo adequadamente, pressinta a concórdia que já havia no coração do seu criador e possa transmiti-la a quem quiser ouvir. O problema é que, segundo Gaddis, ninguém mais quer escutar qualquer espécie de voz, principalmente a voz que vem de nós mesmos, o “fundo insubornável do ser” sobre o qual Ortega y Gasset tanto meditou, não porque o mundo faça de tudo para que isso não aconteça, mas sim porque — eis aqui a reviravolta que talvez Jonathan Franzen não tenha compreendido em seu ensaio — o próprio artista não deixa isso ocorrer em sua própria vida, sufocando a melodia interior que deveria sair naturalmente por meio de pactos fáusticos com a mentira existencial, representados por plágios feitos por dinheiro ou por qualquer espécie de corporação — estatal, privada, religiosa e artística.

Para escritores
Por ironias que nem a vida explica, Gaddis enfim teve algum reconhecimento ao ganhar o National Book Award em 1976 por JR. Isso não significa que alguma vez tenha facilitado para os leitores. Ao contrário: a cada livro que publicava — e foram apenas dois enquanto estava vivo, Carpenter’s gothic e A frolic of his own, separados por um período de dez anos — ele se deliciava em suas alusões cada vez mais crípticas e em suas elipses mais sinuosas. Seriam esses “truques” que o transformavam no famoso “escritor para escritores”, esquecendo-se que havia um público a ser conquistado. Mas ele não se importava: Gaddis evitava dar entrevistas e se negava a ler o seu trabalho em festividades literárias, alegando que era “um dos poucos que ainda acreditava que o trabalho de um escritor deveria valer por si só e não pela reputação da sua pessoa”.

O engraçado disso tudo — e é um dos pontos que Franzen rebate sem perdão no seu texto — é que Gaddis não lia o próprio tipo de literatura que praticava. Desprezava solenemente a obra de Pynchon; alegava que lia Evelyn Waugh antes de dormir, um notório praticante do estilo agradável de fruição literária; e admirava irrestritamente os livros de Saul Bellow, talvez o único que tentou a harmonia entre a forma experimental do modernismo joyceano e a legibilidade do storytelling clássico; aliás, Gaddis escreveu em 1987 uma resenha no New York Times sobre More die of heartbreak, o mais recente lançamento de Bellow na época, provando que poderia conceber livros geniais e gigantescos sobre a decadência do Ocidente, mas era incapaz de redigir um simples texto informativo.

Estas contradições não tiram o mérito de sua obra tardia. Carpenter’s gothic e A frolic of his own são continuações mais ousadas dos romances anteriores e desenvolvem à exaustão algo que, por incrível que pareça, ainda não estava explícito em The recognitions e JR: o tema da entropia, uma analogia perigosíssima entre as teorias do físico Willard Gibbs, que calculou a “medição de um caos sistêmico”, e a degeneração evidente do mundo que estava ao seu redor — e do qual Gaddis acreditava ser direta ou indiretamente uma vítima. Ele conseguiu escapar da armadilha porque fez mais do que qualquer escritor contemporâneo: criou uma forma específica para dar verossimilhança a assuntos tão implausíveis. Em Carpenter’s, a hábil concentração de tempo e espaço que Aristóteles tanto prezava nas tragédias gregas é o que dá força para uma trama insólita que, no fim, explicita como o secularismo liberal e o fundamentalismo religioso andam de mãos dadas para que a cerimônia da inocência jamais apareça novamente; e em A frolic, talvez seu livro mais swifitiano, Gaddis brinca com a linguagem jurídica, por meio de relatórios e protocolos burocráticos, para demonstrar com a precisão de um teorema que as leis que deveriam criar a ordem criam a nossa própria destruição.

É claro que tamanha ambição conquistada só poderia resultar em uma fileira de incompreensões. Mas cada uma delas é também a prova de algo que contamina o meio literário — o filistinismo intelectual, representado pelo seguinte raciocínio: “Se eu não entendi o que o livro diz, por que vou me preocupar em entendê-lo? Logo, vou fingir que ele não existe, sufocá-lo em um cone do silêncio. E se se tornar tão evidente que não possa ser mais ignorado, vou desprezá-lo de todas as formas, usando de todos os meios, do insulto ao completo esquecimento”.

Qual é a ação correta contra tamanha pusilanimidade? Quem exerce a crítica literária precisa tratá-la como uma educação de sensibilidades. Assim, deve-se observar que um corpus como o de Gaddis não é um sistema fechado e inviolável; é um organismo que evolui conforme o artista incorpora as experiências caóticas da vida na sua escrita e cresce interiormente com a forma que cria para expressar os tormentos que o assombram no seu cotidiano. Apesar da intenção de abarcar a realidade como um todo — como Franzen compara o romance de sistema à popularidade do romance de contrato —, cada livro seu deve ser visto como um ato de um drama, o drama de uma alma que tinha muito o que dizer simplesmente porque ninguém ainda a havia avisado de que o fim estava próximo.

Foi assim até o momento em que informaram a Gaddis, por volta de 1997, que perderia a batalha contra um câncer de próstata que já tinha atingido os pulmões e as costelas. Sem perder tempo, começou a trabalhar nos inúmeros papéis que havia abandonado sobre a sua mais longa obsessão: a do impacto do surgimento da pianola sobre as relações entre tecnologia e arte. Mas como encontrar uma forma adequada para abordar tal tópico? E como lidar com isso quando se sabe que seu corpo enfim o traiu?

Compacto testamamento
O resultado foi Agapē Agape, lançado postumamente em 2002. Depois de quatro romances que somam mais de duas mil páginas escritas em 40 anos de carreira, Gaddis decide se despedir do mundo com um compacto testamento literário de menos de 100 folhas em tipografia Bold e espaço um. Contudo, que o leitor não se engane: o assombro continua — e talvez em uma intensidade emocional muito maior. Monólogo de um único parágrafo construído em um fluxo de consciência implacável e rigoroso, Agapē Agape não tem nenhuma história fabulosa para contar, exceto a de um escritor agonizante, em meio a espasmos de lucidez e a delírios provocados pelo remédio prednisona, tentando organizar a pesquisa de uma vida inteira, a mesma pesquisa que Gaddis dedicou sobre a pianola, o que prova que o livro não é apenas a recriação ficcional de um determinado alter-ego, mas também uma amostra da sua vida interior, que confirmaria em breve se o que havia após a morte seria “uma ficção criada para confortar a alma na escuridão da noite”.

Ainda assim, ele não desistiu de usar os seus artifícios de literato. Gaddis se inspira em ninguém menos que Thomas Bernhard, o estilista do ódio, para ir justamente contra a fúria que estaria contida em sua escrita devido a anos de rejeição. Partindo de trechos do romance Correção[3], em que um estudioso de música, recuperando-se de uma longa doença, pretende escrever o maior tratado erudito já feito sobre Mendelssohn, Gaddis brinca com trechos do escritor austríaco, afirmando jocosamente que este teria “plagiado” todo o seu projeto de vida sem que o americano soubesse, numa ligação irônica e subterrânea com The recognitions, confirmando que a entropia da decadência cultural também está marcada na entropia do seu próprio corpo. Referências intertextuais à parte — e que fariam a alegria dos pós-modernos —, há algo mais dolorido nessas citações, algo que, por exemplo, Jonathan Franzen também não percebeu ao comentar Agapē Agape, reduzindo-o sob o parâmetro de que se trata de um livro repleto de “bílis” e “rancor”, como se literatura fosse um concurso de bom-mocismo. Gaddis escolhe Bernhard como modelo literário porque, além da óbvia competição, ele quer superá-lo na forma e no próprio ódio que devia consumi-lo por dentro, refletindo sobre como o impacto tecnológico de uma simples pianola contribuiu para a falência de comunicação na sociedade moderna e permitiu que existissem apenas náufragos perdidos no oceano dos insensatos, não uma comunidade de iguais (o tal Agapē do título, uma referência à substância transcendente que permeia a comunhão cristã, em oposição ao a gape, outro trocadilho delicioso que Gaddis nos dá ao falar da lacuna que guia nossa precária condição).

Eis aqui a figura do tapete, para usar uma imagem tão cara a Henry James, que costura toda esta obra idiossincrática; e temos de ter a decência de entender que é óbvio que as últimas palavras de um homem que se prepara para ir embora não serão mais ouvidas como uma voz — elas serão ouvidas como um longo grito, às vezes agonizante, às vezes amargo, às vezes furioso e sobretudo incompleto. Esta é a surpresa final da qual Franzen não ousou enfrentar no seu ensaio aparentemente tão simples na intenção, mas tão complexo na ignorância: apesar de toda a intenção enciclopédica, apesar de todo o desejo de explicar as causas e as conseqüências de um mundo que sufocou e foi sufocado pela voz do artista, os livros de William Gaddis são uma longa meditação sobre o colapso da sua própria existência como homem e como escritor — e Agapē Agape é o encerramento de uma trajetória que chega à triste conclusão de que tanto o seu criador como nós mesmos somos nada mais nada menos que aqueles que poderiam ter feito muito mais, sempre muito mais (“the self who could do more”, como ele grita nas sentenças finais da sua despedida).

Ao falecer em 1998 com 75 anos, após uma lenta agonia, William Gaddis sabia que enfim aprendera algo que o mesmo Henry James que tanto admirava havia escrito em uma história simbolicamente intitulada The middle years (A meia idade). Neste conto, o escritor Dencombe, também no leito de morte, após ter refletido sobre o fato de que sua obra ainda tinha muito o que dizer sobre o mundo e que ele próprio poderia ter feito muito mais para a literatura, chega à conclusão de que só teve uma única chance — e que foi quase desperdiçada se não houvesse chegado à seguinte conclusão: “Trabalhamos na escuridão, fazemos o que podemos, damos o que temos. Nossa dúvida é a nossa paixão e a nossa paixão é a nossa tarefa. O resto é a loucura da arte”[4]. Este talvez seja o reconhecimento que Gaddis tanto buscou para si mesmo — e a verdadeira lição de mestre que ele nos deixou: a vocação de artista é uma travessia destinada ao fracasso, uma travessia em que poucos escutam a voz daquele “fundo insubornável do ser” que tanto nos atormenta quando nos deparamos com as trevas da vida, simplesmente porque poucos admitem que somos fragmentos de uma ruína que navega a esmo, até nos afogarmos sem emitir um sinal de socorro, sem a possibilidade de um despertar.

Notas
[1] Neste sentido, o Brasil sequer sabe que tal trilha existiu. Apesar de termos três traduções do Ulysses, de Joyce, boa parte da obra de Thomas Pynchon vertida para o português e vários escritores influenciados por Gaddis com espaço garantido nas prateleiras nacionais — em especial o próprio Jonathan Franzen —, não temos um único livro do mestre publicado no nosso mercado editorial. As corajosas exceções são uma versão de Carpenter’s gothic, publicada pela finada editora Best Seller nos idos da década de 1990 como Alguém parado lá fora, a tese de doutorado de Valeria Brisolara Salomon sobre The recognitions e as referências do jovem escritor Vinicius Castro, autor do romance Os sinais impossíveis, em seu blog Altamente derivativo.

[2] A propósito, The recognitions e JR foram reeditados recentemente nos EUA pela Dalkey Press, com direito a grupo de leitura dedicado ao segundo livro, uma cortesia da Los Angeles Review of Books.

[3] Quando alguém lê este título, pergunta-se: será que o único espectro que assombra a carreira literária de Jonathan Franzen é o de William Gaddis?

[4] Uma curiosidade: este mesmo trecho de Henry James serviu de consolo para as atribulações existenciais de David Foster Wallace em uma carta escrita por Don DeLillo; agradeço ao escritor Vinicius Castro pela lembrança desta correspondência entre esses dois discípulos da linhagem literária de Gaddis.

 

Martim Vasques da Cunha

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo, autor de Crise e utopia: O dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e de A poeira da glória – uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record).

Rascunho