A intimidade do horror

Considerado o “grande livro de guerra”, “Tempestades de aço” é um desfile raso de brutalidades
Ernst Junger, autor de “Tempestade de aço”
01/09/2013

De todos os lados, brotavam feridos no mato bombardeado, atraídos pela possibilidade de se protegerem. A entrada da vala estava horrível, abarrotada de feridos graves e moribundos. Uma figura nua até a cintura, de costas abertas por um ferimento, apoiava-se à parede. Outro, com um naco triangular de cérebro pendurado no crânio, não parava de berrar de forma estridente e tocante. Ali imperava a grande dor, e pela primeira vez eu vislumbrava as profundezas de seu reino através de uma fresta demoníaca. E as explosões não paravam. 

Ernst Jünger se alistou como voluntário durante a Primeira Guerra Mundial. Resulta dessa experiência Tempestades de aço, um relato, um balanço, originário dos fatos em lugar da imaginação. Talvez não devêssemos chamar de literatura justamente por isso? Desse modo, O diário dos moedeiros falsos, de André Gide, também deixaria de ser literatura. Mas quem garante que no diário de Jünger tudo se deu conforme o anotado?

Por falar em Gide. Sobre Tempestades de aço, disse: “O mais belo livro de guerra que já li”. Aproveito para discordar.

Caso o elemento que o caracterize como “o grande livro de guerra” seja a descrição fria, seca, a brutalidade expressa em cenas como a que abre esta resenha, então podemos conversar. É tudo muito objetivo na narrativa de Jünger, e isso me faz lembrar exatamente do contrário: o sarcasmo, a ironia sem perder a objetividade, na primeira parte de Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline. Não digo que a narrativa de Céline é melhor ou pior que a de Jünger no aspecto guerra, mas não fica devendo nada. Vale lembrar que o francês foi execrado por escrever panfletos antissemitas, o valor de sua obra literária foi esquecido. Mas e Jünger? Não foi um dos artífices do pensamento do Führer?

Ora, ora. Essa tentativa de amenizar certas atrocidades não sensibiliza este tosco resenhista. Repare bem na dupla que segue: o jurista Carl Schmitt, ideólogo do Estado Total, e Martin Heidegger, autor de Profissão de fé em Adolf Hitler, em que descreve o Führer como o instante de “retorno à essência do ser”. (E muitos defendem Heidegger.)

Ernst Jünger completava o trio assombroso.

Esses grandes amigos — amizade também ancorada em convicções políticas — tornariam a se encontrar em 1955 por ocasião do aniversário de Jünger. Tão amigos e só o inocente do Jünger não era nazista. Era meio nazista. Conte outra.

Raso
Tempestades de aço é de uma crueza assustadora. Ao mesmo tempo, de uma monotonia exemplar: descrever e descrever bombardeios, ataques e suas consequências. O que muda, de vez em quando: o tamanho da ferida, apenas.

Jünger, que de bobo não tinha nada, colocou algumas pitadas de lirismo polar e conseguiu amenizar um pouco a brutalidade, o grotesco de sua narrativa. A selvageria do campo de batalha contrastando com a indiferença daquilo que há de mais puro, nobre e assustador. Os pássaros… “Era estranho que os pequenos pássaros da floresta parecessem não se importar com esse barulho cêntuplo; eles pousavam em paz acima dos rolos de fumaça, nos galhos destroçados.” Mais adiante, num exercício de justificar o horror: “Parecia inclusive que os pássaros eram estimulados pela avalanche de ruídos que rebentava em volta deles”.

O grande livro de guerra — já disse, tenho minhas restrições. Ode à brutalidade rasa, nada mais. Exclua, apague as imagens de Resgate do soldado Ryan, caro leitor, vamos buscar algum significado na guerra, quem sabe uma ressignificação.

Pois bem, Tempestades de aço é um relâmpago entre a dor e a grande dor. Mas o que seria essa “grande dor”?

Antes das dores, vale lembrar que Jünger se alistou logo no início da guerra na expectativa de uma breve aventura. Ocorre que não foi aventura, tampouco breve. Outros se alistaram com igual propósito. Estes, frente à permanência dos horrores, acabaram esquecendo o objetivo primeiro e a aventura foi transformada em aventura em nome da sobrevivência. Demonstravam medo e insatisfação com aquele estado de coisas. Enquanto isso, Jünger demonstrava estar cada dia mais à vontade naquele cenário.

A intimidade com corpos dilacerados, trincheiras sujas de sangue, valas inundadas, chafurdar, matar — duvido que você não perceba certa satisfação nas palavras de nosso narrador. Jünger escava a guerra, escancara seu espanto, descreve minuciosamente seus ferimentos e os de seus companheiros de combate. Mas Tempestades de aço não é o balanço de uma campanha vitoriosa, é a radiografia da falta de sentido e de como essa falta de sentido é capaz de se tornar o sentido da vida e da morte.

A vida. A morte. E a dor? A dor dos outros, de ver morrer. E não existe dor no matar? Novamente, a dor dos outros. E a grande dor?

A grande dor se manifesta no horror dos feridos, no terror que ronda aqueles que não consideram a guerra uma aventura — ou, como Jünger, a guerra como um tribunal, como artífice da justiça.

Falência
Tempestades de aço é um livro sobre a mediocridade, tão violento quanto o filme citado. Repleto de imagens e raso de significados. Oponho-o àquele que para mim é o grande livro de guerra, sobre a bestialidade humana: É isto um homem?. Se Jünger busca a saída para sua aventura armado de granadas, fuzis, facas, Primo Levi, quase nu, faminto, humilhado, desarmado, mostra como o fraco, o oprimido, pode resistir. Não, caro leitor, você não encontrará belicismo na narrativa de Levi, tampouco revanchismo. Apenas o registro. O ser humano faliu. A prova é Jünger, Heidegger et caterva.

Sei que muitos absolverão Ernst Jünger: os contraditórios, os mesmos que condenaram Céline. Vai entender! Mas nunca é tarde para arrependimentos, embora arrependimento não tenha a menor serventia — considere-o confissão de culpa.

Tempestades de aço foi originalmente lançado em 1920. Em 1939, seria publicado, de Jünger, Nos penhascos de mármore, alegoria onde o autor denuncia a chegada da barbárie: um erudito gasta seus dias observando a natureza, enquanto um tirano aterroriza aquela região. O mea culpa de Ernst Jünger — este sim, um livro a merecer repetidas leituras.

NOTA
O filósofo Jean-Pierre Faye defende que o pensamento dos filósofos Schmitt, Heidegger e Jünger influenciaram as idéias nazistas de Hitler.

Tempestades de aço
Ernst Jünger
Trad.: Marcelo Backes
Cosac Naify
352 págs.
Ernst Jünger
Nasceu em março de 1895, na cidade de Heidelberg, Alemanha. Alistou-se como voluntário na campanha militar da Primeira Guerra Mundial, pela qual foi condecorado. Faleceu em 1998, aos 102 anos, deixando uma vasta obra ficcional e ensaística.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho