A força da delicadeza

As palavras são o antídoto para a morte em "Caderno de um ausente", de João Anzanello Carrascoza
João Anzanello Carrascoza por Osvalter
06/02/2015

Filha, acabas de nascer, mal eu te peguei no colo, e pronto, já chega, disse a enfermeira, e te recolheu de mim […] Assim nasce o Caderno de um ausente, segundo romance de João Anzanello Carrascoza. É a primeira linha de um caderno onde um professor, aos cinquenta anos, escreve suas reflexões à filha que acaba de nascer. Movido pelo temor de não estar presente enquanto a menina crescer, transforma as impressões da vida e a história da família em uma carta de educação sentimental. O resultado é prosa poética da mais delicada, e por isso, da mais contundente, onde […] subitamente, a linguagem frutifica, vazando primavera por todos os poros, porque é mais digno se molhar no sangue do presente do que no pó dourado do passado […]

Como de costume na obra de Carrascoza, desde a primeira linha há o presságio da perda: […] as únicas palavras que valem para sempre […] são aquelas, Bia, que anunciam o adeus. Ostensivamente, é de sua própria morte que fala o narrador, mas de fato é da onipresença da morte. Para ele, as palavras da memória são o único refúgio possível: memórias de visitas da tia, da história dos avós, do amor à terra que cultivavam, do cheiro da terra, memória até daquilo que o narrador nunca viu. Bia, […], já estou te perdendo, já te perdi por tudo o que vivestes até este instante, mas eu te recupero com as palavras, Bia, […] Esse Caderno, então, vem para resguardar a presença do pai na vida da filha, e da filha na memória do pai. Mas é muito mais do que um caderno.

As palavras vêm, riacho miúdo que vai ficando mais fundo do que largo. A correnteza, quase imperceptível da superfície, toma força de maré. Engana-se o leitor que pensa poder caminhar de uma margem a outra. Uma vez os pés dentro da água, é deixar-se levar. Pouco a pouco vai encontrar a família de João, o narrador, e Bia, sua filha; parentes vivos e falecidos, de quem conta o nome, parentesco, e um detalhe aqui, outro ali; um tio alcoólatra, outro, trovador; uma tia freira, outra, fugida. Como indivíduos, pouco representam, mas perfazem o mosaico cimentado por encontros familiares, nascimentos, fotos e migrações. Em suma, o ciclo da vida.

[…]não há como secar em nós o licor da história familiar […] Relações familiares são um dos temas importantes em toda a obra de Carrascoza. Diferentemente de muito da nossa literatura contemporânea, aqui o mote é a doação de uns aos outros. Assim como no Cristianismo, o ato de suprema doação é o da mãe que, para dar vida à filha, enfrenta cada dia com muito mais coragem do que saúde. Há também a avó Helena, muito presente e generosa, que faz das tripas, coração, para alegrar a neta enquanto cuida da filha. Mas a libra da carne o narrador cobra de si próprio, ao confessar seu passado de adultério, luxúria, mentira e soberba. Tão abjeto é seu pecado que nem mesmo a mulher toda perdão [conseguiu] retirar dele a cruz que lhe segue pregada aos ombros […] Pelas palavras roucas, sussurradas quase que a embalar a nenê, ouve-se um sentimento de proporções bíblicas. Coerente, Carrascoza diz, em entrevista no projeto Paiol Literário, em setembro de 2013: “Não trabalho com fatos, e sim com sentimentos”.

Ninharias
Nas águas desse lirismo também desembocam as ninharias do instante: sandálias, um relógio de bolso, bichos de pelúcia, […] e logo será o tempo dos lápis de cor, dos brinquedos eletrônicos, do garfo e faca […] A partir dessas ninharias, o autor organiza suas memórias, costura histórias cuja raiz é a realidade, inclusive a dele próprio, mas “o tronco é o das relações afetivas; de pessoas que se falam ou não […] que podem aprender a dizer não só com as palavras, mas com outras formas de dizer”. E uma forma de dizer, bem a caráter desse autor, é silenciar. Tudo nesse testamento é um ode ao silêncio; do título, Caderno de um ausente, que remete ao silêncio deixado por alguém que não está, aos espaços brancos que parecem surgir aleatoriamente em cada página; da voz silenciosa desse narrador que nunca usa exclamação, e com raras exceções, nem maiúsculas, ao maior silêncio do mundo, que é a morte.

Silencioso, mas nem por isso, menos eloquente. João quer deixar para Bia sua experiência, enquanto sabe que ela é o vivido intransferível. Igual a qualquer pai, quer proteger a filha de todo sofrimento; quer que ela se sinta protegida, e para isso busca a imagem mais forte de uma criança no Cristianismo, em linguagem que lembra as escrituras: […] eis o teu pai e a tua mãe, Bia, um de cada lado do teu berço, em torno do qual não há reis magos […] que não se assemelha a nenhuma manjedoura […] A simples alusão aos reis magos e à manjedoura estabelece precisamente o paralelo que o pai nega, e esse berço torna-se, sim, uma manjedoura. É uma imagem plena de significados. Se por um lado é impossível transferir experiência, por outro, compartilha-se a emoção, poetizando. Vida menos poesia igual vazio, diz o autor.

Poesia é o que se lê na prosa de Caderno de um ausente: acriançaremos novamente. Há um coro de vozes roseanas, mas também clariceanas, e de Mia Couto, a quem, tal como Carrascoza, a convivência entre numerosas mulheres desde a infância, parece ter nutrido o universo poético. A intimidade do “tu”, o tom de canção de ninar, os aforismos tão numerosos que desafiam o colecionador, tudo lembra um acolhimento materno, uma relação costurada muito antes de a criança nascer: […] a tua vida, filha, é um texto que há tempos começamos a escrever […] Essa ourivesaria vem a um custo. Segundo o próprio autor, ele escreve devagar, uma página por dia, […] as palavras grafadas com limpidez, igual água dentro do vidro, exibindo toda a transparência de sua escritura líquida e, ao mesmo tempo, escondendo resíduos de substâncias, milagrosas ou nocivas […]

A delicadeza do cristal permeia todo o romance na escolha das palavras, nos volteios das frases, na letra miúda. Ao leitor é oferecido um olhar entre frestas, mas sem qualquer tinta de malícia, seja em relatos das cólicas da nenê, seja para prenunciar, temerosamente, a morte que virá, onde, revelar a morte é comparado a uma sangria causada por uma faca, que é a verdade. João, já de posse dessa faca, gostaria de asfixiar as palavras que trarão a sangria. Mas o leitor também já possui a faca, e pressente a vizinhança da morte. Desde o começo, o autor avisa, […] eu te peço perdão, filha, por não ser o anfitrião ideal […] mas não há como esconder a morte ante a estreia de uma vida.

Ao final, nem todo o amor da família, nem a nuvem de memórias fazem frente ao grande ladrão da vida. A surpresa, apesar dos presságios, vem para todos, mostrando que por mais preparados que estejamos, nunca é o suficiente. Na vida, assim como no amor e na morte, há espaços que se abrem e sugam o que ali havia. Resta-nos preencher com o toque da pele, palavras preciosas e doação os espaços entre as ausências.

Leia entrevista com João Anzanello Carrascoza

Caderno de um ausente
João Anzanello Carrascoza
Cosac Naify
128 págs.
João Anzanello Carrascoza
Nasceu em Cravinhos (SP), em 1962. É contista, romancista, redator publicitário, professor universitário. Nos anos 1980, publicou histórias em jornais de São Paulo e Minas Gerais e frequentou a oficina ministrada por João Silvério Trevisan. Estreou em 1991 com o romance infantojuvenil As flores do lado de baixo. Reuniu histórias para seu primeiro livro de contos, Hotel Solidão, concluído em 1992, foi premiado no Concurso Nacional de Contos do Paraná. É autor ainda de O vaso azul, Duas tardes, Dias raros, entre outros.
Vivian Schlesinger

Escritora, tradutora e mediadora de debates literários. Autora do livro de poemas Papaya na madrugada.

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