A ética, a existência de Deus e a dúvida

O eterno embate entre o bem e o mal — traduzido nas figuras de Deus e do Diabo (para citar apenas o exemplo cristão)
Umberto Eco, autor de “A memória vegetal”
01/01/2001

O eterno embate entre o bem e o mal — traduzido nas figuras de Deus e do Diabo (para citar apenas o exemplo cristão) — leva indubitavelmente à discussão da crença e, a partir disso, a uma profunda reflexão sobre a ética, tanto individual como coletiva. E essa discussão será inócua e superficial se a aventura ater-se apenas a uma visão laica ou cristã. Seria um vagar por uma terra inóspita, despovoada de idéias que guiam os sensos comum, crítico e religioso, que também pode ser comum e crítico. As diferenças incrustadas na oposição dessas idéias podem, e levam, a atrozes guerras: as Cruzadas e a Inquisição são excelentes exemplos. Mas hoje, mesmo com a proliferação de crenças e facções religiosas, o mundo parece mais seguro (?) e com capacidade de dominar algumas insanidades em nome de um “deus”. Ou talvez consiga apenas camuflar as chagas provocadas: alguns países da África, da Ásia, o Oriente Médio e a Irlanda ainda sangram sob o pretexto religioso.

Na tentativa de dirimir algumas dúvidas — ou criar outras — a revista italiana Liberal convidou o leigo Humberto Eco (autor de O Nome da Rosa, O Pêndulo de Foucault e A Ilha do Dia Anterior, entre outros) e Carlo Maria Martini, um dos cardeais da igreja de Roma e forte candidato na sucessão do papa João Paulo II, para uma discussão epistolar sobre alguns temas/dúvidas que guiam a existência humana: ética, liberdade, respeito à vida, esperança, amor e, principalmente, a crença em Deus: ponto de discórdia entre crentes e não-crentes. O resultado das cartas, escritas entre 1995 e 1996, é o livro Em que Crêem os que Não Crêem (Record, 156 págs.). Não é o embate entre o bem e o mal, mas entre as dúvidas que permeiam o cotidiano de um homem laico e de um religioso. Desde o Apocalipse — tão discutido por alguns setores da Igreja Católica — até o direito à vida guiam essa discussão, que, pela rapidez com que é conduzida, deixa e sensação de ser efêmera e superficial. E é em alguns pontos, mas tem o mérito de deixar muitas dúvidas reverberando entre as páginas.

Desde o início, a correspondência tem endereço certo: defender pontos de vista eqüidistantes em direção contrária, mas que sempre acabam cruzando-se em determinado momento. De um lado, Eco tem na dúvida laica sua arma para tentar entender a razão religiosa, que às vezes leva a equívocos e frustrações, assim como ocorre com o pensamento leigo. Quando Eco questiona sobre quando tem início a vida humana, consegue aludir ao mesmo tempo sobre o direito à vida, a pena de morte, o aborto e o ateísmo. E os ateus, “mesmo aqueles mais ‘fideístas’, pois estes são os que, não acreditando em nenhuma instância sobrenatural, encontram na idéia da Vida, no sentimento da Vida, o único valor, a única fonte de uma ética possível” (pág. 29).

E a discussão travada entre os dois intelectuais sobre a ética é, sem dúvida, o foco principal e mais interessante. Enquanto Martini deseja que “todos os homens e as mulheres deste mundo, mesmo aqueles que não crêem em Deus, tivessem claros fundamentos éticos para operar com retidão e agissem em conformidade com  eles” (pág. 70), Eco centra suas atenções na dimensão ética em relação ao outro, ou seja, ao indivíduo que está ao nosso redor e, de alguma maneira, participa de uma vida comum: “[…] é o outro, é seu olhar, que nos define e nos forma” (pág. 83). Aí seria a defesa de uma ética individual estendida à coletividade, à participação social de indivíduos comuns. Não que isso seja suficiente para afastar o mal entranhado em cada um, traduzido por meio da competitividade moderna, na qual o homem se vê sufocado pela ânsia de vencer entremeio a tantos competidores.

Mas enquanto a discussão avança, novas dúvidas nascem e a resposta requer uma extensa e profunda reflexão, talvez um tratado filosófico, que não é o objetivo da publicação das cartas. A resposta para em o que crêem os que não crêem não é alcançada. Não por incompetência, mas pela complexidade do assunto. Crê na vida o ateu, acima de tudo? Ou só na vida crê o ateu? Crer em Deus é crer na vida? O encontro com Deus não requer a morte para o crente? Deus guia a ética ou a ética é pessoal e guiada por uma crença que transcende, até mesmo, a existência ou não de Deus? As dúvidas ficam e são importantes para que a discussão não se atenha a verdades absolutas — elas possivelmente não existam — quando a crença é o núcleo de qualquer tema.

O contraponto (a segunda parte do livro) ao pensamento de Eco e Martini é feito, de maneira crítica e distanciada, por outros pensadores italianos. E mais uma vez o consenso é impossível. O filósofo Emanuele Severino critica que Eco “sustente uma perspectiva que repropõe a aspiração tradicional a um fundamento absoluto da ética. Para além das intenções, seu discurso é, de fato, apenas uma fé, assim como o de Martini” (pág. 99). É a ácida crítica destinada aos dois, mas mais cruel com Eco, pois Severino o considera “estar ainda muito distante da essência profunda do pensamento contemporâneo”. Talvez seja apenas mais uma briga de egos entre intelectuais, mas enriquecedora para a reflexão. Já o filósofo Manlio Sgalambro defende que a existência do bem é a negação de Deus. A ética do bem, então, pressupõe a inexistência de Deus. (Os ateus comemoram). “O início da ética é íntimo do estupor. O mal social é uma insignificância diante do mal metafísico: um ato de bem contém a mais absoluta negação de Deus” (pág. 105).

Nesse turbilhão de perguntas e tentativas de respostas se sobressai a dúvida — premissa indispensável para o desenvolvimento crítico da existência humana. Mas entre todas as questões aventadas no livro, não se deve esquecer um dos aforismos de Dostoiévski: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. E hoje o que não é permitido na efêmera existência humana?

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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