A estética da desesperança

"Os coadjuvantes", de Clara Drummond, discute melancolia, riqueza e a distância que separa as classes sociais
Clara Drummond, autora de “Os coadjuvantes”
01/09/2022

Depois da leitura de Os coadjuvantes, de Clara Drummond, a caneta ficou suspensa algum tempo sobre o papel. Por algum motivo, tive grande dificuldade em falar a respeito do romance. O livro não é particularmente complexo, então talvez fosse algo pessoal; talvez se relacione ao fatalismo que enxerguei nas páginas e incomoda como lembrete de certas coisas que queremos esquecer; talvez seja resultado da minha incapacidade de me identificar com Vivian, sua protagonista. Essa última hipótese faria todo sentido: o livro é retrato de uma personagem que não se identifica com ninguém.

Vivian é ao mesmo tempo exemplar de um certo zeitgeist e difícil de se definir. Ela é um dos maiores exemplos que já li de que é possível se identificar um problema sem dar um passo sequer rumo à solução, e a maneira como descreve seu meio me lembra as ideias de Mark Fisher, segundo quem, hoje em dia, é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo.

Nascida numa família que 99% do país chamaria de rica, Vivian está às margens dessa riqueza apenas o suficiente para que seus pais se declarem classe média, apesar de suas propriedades múltiplas e carros blindados. A insegurança que sentem, o medo do não-pertencimento a essa classe, faz com que se apeguem com mão de ferro a todos os símbolos de que, sim, eles fazem parte daquele 1%. Vivian, crescendo em meio a tudo isso, é policiada constantemente. Tudo, desde sua meninez, é questão estética, incluindo cada gosto pessoal ligeiramente incomum. Tendo crescido ao longo dos anos 90 e 2000, isso significou que qualquer idiossincrasia seria medicada, e que as medicações, no futuro, seriam substituídas por outros tipos de droga, quem sabe mais pesadas.

Com o crescimento, Vivian também toma para si a visão do mundo como manifestação estética, como ela mesma não cansa de demonstrar. Trabalhando como curadora, escolhe amigos pela aparência como escolhe quase tudo na vida. A principal descrição de uma de suas primas é: gorda. Avalia suas ações de acordo com seu mérito estético num contexto em que todos fazem o mesmo, e não sem motivo entende os gestos e atitudes daqueles a seu redor como encenações, nas quais todos ocultam um Eu que nem eles mesmos conhecem.

Embora diga que “precisa se agarrar a qualquer coisa material”, a máxima materialidade do mundo de Vivian são as leis não-ditas da estética. Quando a rudeza de uma vida concreta e chã invadem seu mundo, o fazem como choques ou fenômenos que, para ela, parecem quase incompreensíveis.

O exemplo máximo disso é o evento principal do livro: Darlene, uma ambulante que vende cervejas na rua do prédio onde Vivian mora, é espancada pela polícia ao trabalhar na porta de uma festa. Ao fim do livro, Vivian descobre que está morta — não se sabe se graças ao espancamento ou não. Uma vez que nunca perdeu ninguém próximo de si, Vivian não entende seus próprios sentimentos a respeito, e como tudo em sua vida, esses sentimentos precisam atravessar uma camada cínica de autoconsciência crítica. Seus próprios movimentos internos são entendidos como atuação-para-si-mesma, e ela termina por questionar a validade das emoções que em raros momentos escapam.

Caráter ritualístico
Nos raros momentos em que Vivian deixa escapar algum sentimento, essas emoções fugidias revelam mais da personagem, como quando ela cita a Bíblia — “a quem mais foi dado, mais será cobrado” —, e toma isso como verdade em nosso mundo em vez de aviso para o próximo, dando a entender que vê seu sofrimento psíquico atual como maior que o sofrimento da Darlene espancada e morta. Ao questionar seu incômodo e tristeza pela perda de Darlene, ela conclui que o espancamento a incomoda justamente por ter acontecido na sua frente, impedindo que ela consiga ignorá-lo e lhe causando uma culpa vaga por ser parte, ainda que insignificante, de um sistema que permite que tudo isso aconteça. A presença de Darlene e sua existência muito mais material que as preocupações estéticas de Vivian permanecem um incômodo e questionam seu ver-o-mundo de uma maneira que não compreende e não consegue aceitar que possa estar, de fato, triste pela perda dessa mulher, simplesmente porque não a conhecia. E embora não exista uma relação necessária entre o sexo violento ou intenso e a autopunição, faz sentido enxergar assim a experiência de Vivian ao final do livro, uma experiência sexual que, mais uma vez tomada pela estética, ganha um caráter quase ritualístico.

Isso me leva a falar de outro personagem essencial para pensar Vivian: Luiz Felipe, o engenheiro surfista maconheiro vegano, booty call de Vivian por quem ela sente algo que não quer aceitar, sobre quem faz piadas pelas costas com os amigos. Nele, talvez mais que na ambulante Darlene, se manifesta a característica mais interessante de Vivian: sua fascinação por uma profundidade intangível que percebe na vida de Darlene e Luiz Felipe, justamente as pessoas que mais subestima e julga como intelectualmente rasas. Quando ela os descreve, seu ponto de vista é o de um antropólogo que não entende os hábitos do povo que estuda, tentando explicar uma relação com o mundo que lhe parece pura e rica, talvez até sábia, mas que ela mesma nunca poderia ter. Vivian parece quase magnetizada por essas personalidades, como se possuíssem algo que lhe falta ou no mínimo lhe intriga, e se perde em pensamentos sobre o indescritível que existe no comum — tudo isso enquanto proíbe a si mesma os sentimentos que poderiam aproximá-la dessas pessoas inconscientemente, ao anulá-los com argumentos cínicos que conta para si mesma.

No fim das contas, Os coadjuvantes é o estudo dessa personagem, e nos mostra seu mundo através de uma lente que vê tudo como estético, uma personagem cujo nível de autoconsciência é tão grande e tão constante que quase parece exagero — mas que se casa de modo natural com suas preocupações estéticas.

Finalmente, esse é também um livro fatalista, em que mesmo os rituais de autopunição existem atrás de uma camada de preocupações estéticas que a personagem não consegue abandonar, preocupações que não geram mudança, mas apenas um frágil conforto. Vivian parece, de fato, crer que é impossível mudar, e não é à toa que o romance faz lembrar Fisher. Presa a si mesma e a suas roupas por não acreditar sequer que a mudança é possível e questionando qualquer sentimento que ameace se tornar autêntico, ela recorre a castigos simbólicos para expurgar temporariamente a culpa que a sensação de impotência não a deixa superar.

Já nós, leitores, só podemos torcer para que ela esteja errada.

Os coadjuvantes
Clara Drummond
Companhia das Letras
108 págs.
Clara Drummond
É jornalista e escritora. Nascida no Rio de Janeiro (RJ), em 1986, e vivendo atualmente em Lisboa (Portugal), é autora dos romances A festa é minha e eu choro se eu quiser e A realidade devia ser proibida.
Bruno Nogueira

É mestre em Estudos Literários e autor do livro de contos A síndrome do impostor.

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