À espreita de um cronista

Reunião de crônicas “Um solitário à espreita” é leitura de pouca força, aquém da obra de Milton Hatoum
Milton Hatoum por Osvalter
01/11/2013

Desde seu primeiro romance, Relato de um certo Oriente (publicado em 1989 e vencedor do Prêmio Jabuti), Milton Hatoum recebeu expressiva atenção dos críticos e dos leitores. Com o título seguinte, Dois irmãos (2000), tornou-se nome praticamente obrigatório nos rankings de escritores brasileiros contemporâneos (listas elaboradas por uma sociedade que coloca em dúvida os discursos históricos, os cânones e as demais hierarquias, enquanto produz esses incontáveis e prematuros balanços e pódios).

Poucos romancistas brasileiros nascidos na segunda metade do século 20 possuem fortuna crítica tão ampla, juntaram tantos prêmios e foram tão traduzidos. Assim, em redor de Milton Hatoum criou-se rapidamente uma redoma inflada por lugares-comuns, cerzida por críticos e pesquisadores acadêmicos, endossada pelos colegas de ofício, ratificada pelo mercado de livros, eventos, etc.

As críticas negativas que surgem costumam gerar desconfiança, são tomadas como produto de má-fé ou desejo de chamar atenção. Considerações não elogiosas costumam ficar mesmo nos pequenos senões. Flora Süssekind, por exemplo, encerrou seu texto sobre Relato de um certo Oriente lembrando que o final da narrativa traz explicações desnecessárias, mas sustentou que Hatoum se destacava “em meio a tantos romances só confissão e tantos retratos falhados de geração”. Sobre Dois irmãos, foi a vez de Leyla Perrone-Moisés apontar problemas no desenlace do romance, onde “idas e vindas dos personagens” e “excesso de motivações” diminuem a intensidade — ela, no entanto, também esclareceu que tais reparos não prejudicavam sua “força total”.

Com Cinzas do Norte (2005) e Órfãos do Eldorado (2008), além da coletânea de contos Cidade ilhada (2009), Hatoum seguiu estimado por quase todos os críticos e bem sucedido com seu público leitor, que já comprou mais de 200 mil exemplares de suas obras. Karl Erik Schollhammer, autor de Ficção brasileira contemporânea, arriscou uma explicação para sua popularidade: uma literatura “na convergência entre um certo regionalismo sem exageros folclóricos e o interesse culturalista na diversidade brasileira que, nas últimas décadas, substituiu a temática nacional”.

A professora Tânia Pellegrini tem sido dos intelectuais a apontar as redutoras dicotomias que nos serviram de lentes para quase todos os debates. Mais que isso, ela sustenta que boa parte dos críticos e escritores ainda baseia suas análises e demandas em oposições como campo x cidade, regional x universal, tradição x ruptura, documento x subjetividade. Assim, onde muitos insistem em mapear novidades, ela prefere ver a atualização de temas e rotas. Em Despropósitos: estudos de ficção brasileira contemporânea, por exemplo, optou pela comparação entre Graciliano Ramos e Hatoum, na qual este resulta influenciado em dois níveis: 

um primeiro, concreto, ligado a uma situação específica dos autores, que escrevem a partir de experiências originalmente gestadas em regiões periféricas do país (…); um segundo, simbólico, ligado à situação própria de alguns narradores por eles criados, que, habitantes dessas regiões, constroem seus relatos a partir de vivências extraídas de lugares à margem dos núcleos familiares de que fazem parte.

Ou, como afirmou Schollhammer, são histórias contadas por olhares oblíquos, que tudo observam “de algum canto obscuro da casa ou da vida”, olhares fronteiriços, marcados pela condição esquerda dos personagens. Esses narradores buscam no passado as chaves de entendimento do mundo; chaves sempre suspeitas (como são todas as refigurações). Veredas que se tornam ainda tortuosas por conta dos jogos de ocultamento e revelação, pelas reviravoltas e outras técnicas tão requisitadas por Hatoum e seus coetâneos.

Estudiosos das teorias da “pós-modernidade” certamente contribuíram para consagração de Hatoum. Os romances do escritor manauense estão repletos de temas que lhes são caros, tais como alteridade, diversidade, desintegração familiar, paisagens em transformação e deslocamentos. Tudo corrobora para que os passos narrativos em falso tenham sua importância minimizada. Sobrepõe-se o contexto favorável.

De fato, Milton Hatoum é um romancista que teve estréia respeitável, que amadurece tecnicamente a cada novo título, cujo memorialismo não sucumbe à falta de imaginação, além de saber trabalhar o legado de seus antecessores, atualizando-os, fazendo com que tais influências dialoguem com demandas e correntes atuais. Em suma, romancista competente.

Quando o menos é bem menos
Para Hatoum, comparado à poesia, o romance “é, com freqüência, uma obra imperfeita, um calhamaço com vários deslizes e momentos de frouxidão”. E a crônica, como fica? Pela brevidade dos textos, espera-se também que sejam menos freqüentes os tais “deslizes”, apesar da regularidade de produção exigida pelos meios que a veiculam. A coletânea Um solitário à espreita traz justamente um Hatoum menos sujeito a reparos. Os textos são bastante corretos — o que não significa que sejam bons.

Se livros como Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte têm sido janelas úteis para reflexões sobre a ficção brasileira contemporânea, esta seleção de crônicas pode muito bem lançar a dúvida: seria Um solitário à espreita uma exceção, ou sintoma de algo mais grave, de uma perda generalizada de qualidade?

Ligada à história da imprensa nacional, a crônica brasileira desenvolveu características que muitos consideram suficientes para diferenciá-la de espaços aparentados dos jornais de outros países. Entre as distinções, José Marques de Melo (um dos colaboradores de Jornalismo e literatura: a sedução da palavra) defende que, enquanto no jornalismo hispano-americano a crônica se configura como meio informativo, “no jornalismo luso-brasileiro adquire a fisionomia de um gênero tipicamente opinativo”. Ele cita também Afrânio Coutinho, para quem as crônicas se afastam dos demais lugares da imprensa por conta do seu “acento lírico”.

Nomes como Machado de Assis, João do Rio, Carlos Drummond de Andrade, Joel Silveira e Sérgio Porto cultivaram esse locus amoenus, alguns deles não rejeitando (e até assumindo) o rótulo de “literatura menor”, baseado no desapego às normas, na leveza, na simplicidade, no tom coloquial e despretensioso. Escritos que, apesar de seus melhores autores conseguirem transcender a efeméride, nunca foram obrigados a durar mais do que as edições dos jornais. Mesmo assim, alguns desses “caçadores do cotidiano”, como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Luis Fernando Verissimo, conseguiram fixar seus nomes nos compêndios de literatura, produzindo nada ou quase nada além de crônicas.

Nas últimas décadas, contudo, a leveza e a falta de pretensão descambaram para a burocracia; o tom confessional, o “acento poético” e outras marcas típicas foram incorporados como fórmulas, truques que não raro servem para que escritores liguem o piloto automático. Liberdade e pressa — que antes funcionaram como mola criativa — passaram a servir de base para exercícios de mesmice, calhau de colunas ociosas e satisfação de egos de supostos escritores. Tudo isso quando, devido às transformações nos meios de comunicação, os cronistas deveriam estar mais inquietos e dispostos a revigorar o gênero.

Óbvio que Milton Hatoum não figura entre os charlatões. Ele tardou a aceitar os convites para militar na crônica. E, quando topou, não abriu mão do cuidado com a linguagem, nem se afastou radicalmente do universo temático de seus romances. Porém, as ferramentas que nos livros estavam a serviço das histórias de “personagens oblíquas”, de famílias e paisagens em desintegração, nas crônicas parecem insuficientes, carecem de espírito que lhes dê força.

Dividido em quatro seções (Dança da espera; Escorpiões, suicidas e políticos; Adeus aos corações que aguentaram o tranco; Dormindo em pé, com meus sonhos), Um solitário à espreita reúne textos publicados nos últimos dez anos, mas que foram retrabalhados pelo autor. A revisão provavelmente retirou cacos indesejáveis, mas não impediu que, em livro, suas crônicas soassem como produto esmerado de oficina literária — bem intencionado, bem escrito e bem mediano.

As peças nitidamente baseadas na memória de Hatoum lembram aquelas histórias que ouvimos cheios de expectativas, mas que terminam aquém; os momentos políticos são coleção de comentários triviais, que dificilmente fazem pensar ou se indignar. As crônicas que podem suscitar interesse maior tratam da própria literatura, ou lançam candeia para os apreciadores e pesquisadores de seus romances. Leitores mais atentos perceberão dados como a figura materna em destaque, em detrimento das personagens paternas tão essenciais na obra romanesca de Hatoum, construída sobre famílias patriarcais em decadência e o sentimento de orfandade de seus narradores.

Em nota de abertura, autor afirma que “não poucas vezes o gênero literário depende da expectativa do leitor”. Melhor seria reconhecer que “sempre depende”. Caso alguns leitores confiram Um solitário à espreita e também terminem insatisfeitos, é provável que a explicação seja justamente esta: de Milton Hatoum, esperamos sempre mais.

Um solitário à espreita
Milton Hatoum
Companhia das Letras
288 págs.
Milton Hatoum
Nasceu em Manaus (AM), em 1952. Estreou na ficção com o romance Relato de um certo Oriente, seguido de Dois irmãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado. Lançou também a coletânea de contos A cidade ilhada. Sua obra já recebeu os prêmios Jabuti e Portugal Telecom, entre outros, além de estar traduzida em diversos países. A seleção de crônicas Um solitário à espreita é seu mais recente livro.
Cristiano Ramos
Rascunho