Falar de um bom livro é ainda o desafio maior de qualquer resenhista. Fácil é procurar problemas e apontá-los; fácil é agir com severidade no exercício da crítica, por mais criteriosa e responsável que ela seja. No entanto, quando o livro é de fato especial, nada do que se venha a dizer sobre ele conseguirá fazer plena justiça às suas qualidades. A vontade do resenhista, em situações como essa, é usar o espaço destinado aos comentários para deixar ao leitor uma mensagem em letras garrafais: “não perca tempo, vá logo, compre esse livro, leia-o e depois me diga”.
De tempos em tempos surge um livro que põe o resenhista na mesma situação dessa relatada aí acima, transcrita de um texto publicado aqui no Rascunho em setembro de 2004. É o caso agora de Sangue no olho, primeira obra da chilena Lina Meruane lançada no Brasil numa bela edição da Cosac Naify. E, assim como aquela que motivou o comentário de quase uma década atrás, tem também a doença como tema. Mas não se trata de uma predileção mórbida pelo assunto, como pode parecer, a justificativa para o entusiasmo do resenhista. A doença, assim como o sexo, é um tema sempre difícil de ser abordado de forma original; por ser parte indissociável da vida, muito já foi usado como matéria literária. O livro que consegue transcender o lugar-comum nesse contexto já se candidata à galeria dos especiais.
Mais de um artigo encontrado na internet refere o que Roberto Bolaño dizia de sua conterrânea: ela era uma escritora endemoninhada. Partindo de alguém que pôs o número da besta no título de seu mais famoso romance, 2666, o comentário traz uma nota de admiração que nem sempre as veleidades correntes no meio deixam aflorar. Bolaño leu o livro de estreia de Lina Meruane, uma coletânea de contos intitulada Las infantas, lançada no já distante 1998, e de pronto anteviu para sua autora um lugar de destaque na literatura chilena contemporânea. Também na internet lê-se que o catalão Enrique Vila-Matas, um dos mais inventivos escritores da atualidade, não poupou elogios a Sangue no olho, lançado originalmente em 2012, segundo ele “um romance genial e de inteligência perturbadora”. O aval desses dois ilustres, somado à chancela de uma casa editorial que prima pelo bom gosto de suas publicações, já bastaria para despertar o interesse do leitor. Mas, para atiçar um pouco mais nossa curiosidade, Meruane afirmou numa recente entrevista que “um romance é o produto de uma escrita em transe”. Diante dessa afirmação, o leitor desavisado teria toda a razão do mundo para desconfiar de que se trata de um romance experimental, desses que costumam cair nas graças de um segmento muito restrito, enquanto se mantêm inacessíveis ao grande público. Nada mais falso.
Sangue no Olho não é apresentado como obra autobiográfica, embora seja inspirado numa experiência pessoal. A autora sofreu um problema nos olhos do qual evita falar, não tão grave quanto o de sua personagem homônima Lina Meruane, chilena como ela, também vivendo em Nova York, também escritora, que, como consequência terrível da diabetes, tem a visão subitamente obscurecida por um derrame ocular. O quadro é crítico: um dos olhos já havia sofrido um incidente semelhante e está seriamente comprometido; o que restava são vai agora pelo mesmo caminho. Quase cega, Lina está sob os cuidados de um grande especialista russo, o Dr. Lekz, em quem ela confia mas que não lhe entrega um diagnóstico definitivo, enquanto tenta se acostumar a uma realidade nova e desalentadora numa Nova York hostil a quem não consegue enxergar onde pisa. Lina conta com a ajuda do namorado espanhol, Ignacio, cuja família desaprova o envolvimento demasiado numa relação que considera sem futuro. Tendo de viver o aflitivo período de espera de um mês antes que o oftalmologista decida se opera ou não seus olhos, Lina resolve ir visitar a família em Santiago. E ali depara-se com outra e inusitada situação de conflito provocada pela atenção desmesurada que lhe devotam os pais, ambos médicos, um “turbulento clã de origem mediterrânea armado de amor até os dentes”.
Sem pieguices
Narrado em primeira pessoa por Lina, que transporta o leitor para dentro de seu drama pessoal sem sentimentalismos ou pieguices, Sangue no olho estrutura-se em pequenos capítulos que se restringem a duas ou três páginas, uma concisão meticulosamente estudada à qual o texto deve em grande parte sua força. No ritmo de um thriller, como bem assinala o escritor Juan Pablo Villalobos na orelha do livro, “onde cada diagnóstico adquire a força de um clímax”, a história é movida pela angústia crescente da personagem rumo ao desconhecido. Cada momento dessa cruel travessia é pontuado de surpresas. O instante em que ocorre o segundo derrame ocular de Lina durante uma festa entre amigos em Nova York, uma cena do começo do livro transcrita no trecho que ilustra esta resenha, é uma mescla de sensações conflitantes: junto com a beleza que Lina consegue vislumbrar no sangue que lhe cega chega também a confirmação do mais medonho dos prognósticos. Quem já enfrentou uma doença grave e irreversível sabe muito bem qual é a realidade por trás desses pensamentos contraditórios. O rico subtexto de Lina Meruane, a autora, só faz sugerir o que todo paciente conhece: mesmo que Lekz não lhe diga, no íntimo Lina, a personagem, sabe o diagnóstico e o prognóstico; o que ela espera, com a fé possível, é que seu especialista encontre uma solução mágica que contradiga intuição dela.
À medida que Lina tateia nesse mundo de sombras que roubou sua liberdade, Nova York, a cidade que escolheu para viver, começa a lhe parecer estranha e inóspita, ao contrário de Santiago, onde se sente segura a ponto de orientar Ignacio a fazer trajetos, na direção do carro, que estavam adormecidos em sua memória e que vêm à tona com espantosa facilidade. A viagem a Santiago, por sua vez, ganha um toque melancólico adicional. Mesmo que o pior cenário para Lina seja a cegueira definitiva, a visita recende a despedida. Dois elementos trabalham para reforçar a sensação de melancolia: o frio do inverno andino, em contraste com o calor sufocante de Nova York à época, e os rescaldos da ditadura de Pinochet, que ainda estão bem acesos na memória de Lina, embora a situação política no Chile já tenha mudado há anos. Mas o que ela vê é o que ela consegue lembrar, e isso provoca uma distorção temporal que vai explicar o anacronismo em certos momentos da narrativa, como se um personagem de repente aparecesse vestido com o traje de uma outra época.
A debilidade que a doença impõe a Lina, ao contrário de deixá-la submissa, lhe dá um instrumento poderoso para impor sua vontade e até mesmo exigir de Ignacio provas de seu amor. Essa inversão no que seria a hierarquia natural de poder em casos como esse é mais comum do que se imagina. Sabe-se até que há doentes que vão fundo e tiranizam seus familiares com as mais torpes chantagens emocionais. Lina não chega a tanto, mas o fundamento é o mesmo.
Lina Meruane é uma autora notável que tardou demais a chegar ao Brasil. Sangue no olho está agora aí para reparar esse atraso.