A construção de uma ruína

Os poemas de Casa devastada, de Thiago Mattos, funcionam também como uma narrativa
13/05/2015

A visitação de ruínas talvez devesse ser sempre um turismo de luto. Algo morreu ali, alguém, uma parte importante de alguém. Luto e um forte aplauso no fim da visita. Casa devastada, de Thiago Mattos, é a construção consciente de uma ruína, um monte de coisa que vai morrendo no eu-lírico-narrador e em torno dele, enquanto ao mesmo tempo o leitor acompanha a própria construção dessa ruína. Uma parede que sobe é uma parede que cai, eis a obra em andamento na leitura. Paredes de sensações empilhadas. Em uma casa sem nome de rua nem número — pode ser a sua, do seu vizinho, de seus pais — circula gente que conhecemos apenas pelos primeiros nomes; gente que o texto duvida o tempo todo: um momento parece que são delírios, em outro que estão mesmo ali, que morreram ali, fisicamente, até violentamente.

Como em Brasilíada, de Nicholas Behr, como em Uma viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares (para citar exemplos contemporâneos), Casa devastada é poesia, mas não uma coletânea: é também uma narrativa. Um romance em versos, repleto de imagens poéticas bem significativas e independentes. Pode-se ler o livro de forma não-linear, como a maioria das obras poéticas. Mas essa ruína foi construída para que se passeie por ela.

O livro é dividido em cinco partes. As quatro primeiras estão debaixo do mesmo teto: é um grande parêntese que se abre em (Casa e termina em devastada). Dentro desse grande parêntese estão quatro partes: O útero da casa, onde vivem trechos mais líricos. Os órgãos da casa, quando certa virulência se revela, O sexo da casa, em que há desejo e há também traição, e O sangue da casa, onde a ruína se completa. Depois vem a quinta parte, Contraendereço, que é o deixar (ou tentar deixar) tudo o que foi destruído para trás.

Os poemas têm títulos (estão entre parênteses). Poemas que são também cenas. Coisas vão ocorrendo, contadas em tempo presente. O eu-lírico é o narrador e é personagem, com a Magda, o Pedro, o Thiago, o Nelson, a Lili. Ele trata Magda como alguém real na maior parte do tempo. Nos primeiros versos é como se a recebesse em casa: “Entra, Magda, e olha por/ onde anda, que o chão está/ cheio de ossos”. Thiago não demora a ser apresentado como sua invenção: “Talvez você devesse sentar aí e esperar, Thiago/ Thiago, meu mais fiel amigo/ que inventei para não ter/ que me inventar”. Pedro surge aqui e ali, mais enigmático ainda, às vezes parece ser uma paixão coletiva. Nelson e Lili, mais rarefeitos.

“Magda, oh Magda”, frase que soa a poemas bem antigos, é repetida diversas vezes. É um choro, é uma ironia, é um refrão que ajuda a dar unidade aos poemas. Há também trechos em que diz que até mesmo Magda não passa de uma invenção (e o que não é?).

Murar as sensações
A tentativa nessa leitura é tentar murar um pouco as sensações. Subir paredes, abrir apenas pequenas janelas, para que não escape tanto a compreensão. Mas ela escapa. Como pede a poesia, a interpretação de cada texto e principalmente do todo pode levar leitores a lugares bem diferentes. Esta é uma recomendação: a diversão em Casa devastada é brincar com as suposições. O autor não fez questão nenhuma de tornar óbvia a história que criou. Ainda bem.

Há pelo menos dois momentos em que Thiago Mattos parece que revela algo sobre seu próprio modo de encarar o texto poético, expondo vísceras em português claro, só camuflando os significados. Em (o azeite debaixo da pia sumiu), escreve: “Vieram vindo os poemas/ Espero como se o vento próximo/ fosse deixar o contrato sobre a mesa/ ou qualquer poeira sobre a folha/ ou como se o verme que escondo dos/ vermífugos/ atrás do fígado/ pudesse recomeçar o trajeto/ sair pelo nariz/ cair sobre a folha”. Em (cama retalhada), reforça a ideia: “As pessoas sentam pra escrever um poema/ como se estivessem sentando para comer/ carne de pato/ Thiago disse/ E na verdade tinham que sentar pra escrever um poema/ como sentam pra ir ao banheiro/ como sentam pra pedir dinheiro/ como sentam pra passar o enjoo/ como sentam pra masturbar alguém”.

A tensão está espalhada por todos os poemas. Quando parece que surgirá uma declaração de amor ela é também destrutiva: “cuidado com a parede/ que se recusa a emudecer/ Acha que é memória/ ou cisma que é esquecimento/ mas na maior parte das vezes/ se diverte segurando teu retrato, Magda/ como um revólver/ apontado contra meu coração”.

Na quarta parte a sugestão/confusão é que Magda foi enterrada nas paredes da casa que virou a ruína do personagem-eu-lírico-narrador. Pode-se, cinematograficamente, pensar que de fato ela foi morta e cimentada — há casos reais assim. Ou que tudo seja metáfora, porque em todas as casas há pessoas que morreram nas paredes. E assim, apesar das imagens muito concretas que são construídas ao longo dos poemas, é nas sensações que os textos dizem mais: “Não sei se moro aqui/ ou se moro aí, Magda/ oh Magda/ Essas viagens me cansam/ Te fiz morar na casa em que nasci/ mas aí mudei/ a casa virou minha viagem”.

Em (cozinha e banheiro), que está na segunda parte (Os órgãos da casa), está mais uma chave desta casa devastada, a morada que é como a de todo mundo, depósito sólido do que acumulamos de mais abstrato. Esse poema tem cheiros, cheiros ruins, por exemplo, que são muito reais (ainda que metafóricos, no caso). Ao mesmo tempo tem aquela liquidez da vida, quando até o que nos ilude como muito próximo e conhecido é na verdade um enigma. “Não se preocupe, Magda/ oh Magda/ não se preocupe:/ não conto pra ninguém o cheiro da tua merda/ É verdade que saber/ saber mesmo/ e conhecer/ conhecer mesmo/ não sabemos e não conhecemos nada/ É verdade que não conheço de você/ senão o nome/ Mas o amor é isso/ e nos alcança os tornozelos/ nos abocanha a língua o fígado e a paciência/ devolvendo em solidão”.

Há um momento em que fala de Magda morrer primeiro, para que experimente uma “desacompanhada solidão”. É uma ruína humana, antes da ruína de fato.

De novo é preciso destacar um trecho para ressaltar a disposição do autor em tratar da vida e das desgraças que a constroem como um modo gasoso de enxergá-la — nada é exato, tudo é ruína; e a ruína é o que dura: “Quem morre/ apenas perdeu a capacidade de ilusão/ De ação não/ Porque os mortos continuam agindo/ Talvez mais”.

Casa devastada
Thiago Mattos
Confraria do Vento
233 págs.
Thiago Mattos
Lançou em 2012 Teu pai com uma pistola, seu primeiro livro, também pela Confraria do Vento. É natural de Petrópolis (RJ) e estudou cinema. É professor de francês e tradutor.
André Argolo

É jornalista e pós-graduado em Formação de Escritores pelo ISE Vera Cruz (São Paulo). Autor do livro de poemas Vento sudoeste.

Rascunho