Em todos os tempos, os grupos literários — independentemente do espaço em que estejam — tentaram marcar um território, localizar um foco de ação e desmontar (ou até mesmo destruir) o inimigo escolhido. As batalhas são inúmeras e os exemplos se multiplicam com facilidade pela história. Como numa guerra campal — dos tacapes às bombas atômicas —, todos buscam um espaço, exercer o poder, sobrepondo seus ideais estéticos aos considerados ultrapassados. Normalmente, de um lado os jovens (com o ímpeto causado pela boa sensação da imortalidade) contra o poder vigente, o inimigo a ser combatido, a ser derrubado, para que novas idéias sejam colocadas em prática. Por sua vez, os “arcaicos” não hão de fraquejar e entregar o queijo de mão beijada para a gatarada alvissareira. Está preparado o terreno para a grande batalha.
Para nortear um pouco melhor esta conversa, alguns exemplos. Um mais antigo: o embate entre Antero de Quental e o poeta romântico Antonio Feliciano de Castilho, em 1865. A peleja do jovem Antero, então com 25 anos, estava repleta de ironia, sarcasmo e, até, desdém, características irresistíveis aos jovens de espírito provocativo. A querela deu-se por motivos estéticos: de um lado o romântico Feliciano, um senhor de 60 anos, e seus seguidores, de outro o rapagote Antero e sua trupe de modernos. Entre as tantas farpas de ambos os lados, destaca-se o atrevimento de Quental, na carta intitulada Bom senso e bom gosto: “Concluo daqui que a idade não a fazem os cabelos brancos, mas a madureza das idéias, o tino e seriedade: e, neste ponto, os meus vinte e cinco anos têm-me as verduras de V. Ex.ª convencido valerem pelo menos os seus sessenta”. E por aí afora.
Cá nestas terras brasileiras, muitos foram os qüiproquós literários, principalmente a partir da Semana de Arte de 22, emblemática para as discussões estéticas em todas as áreas artísticas, criando-se um clima favorável ao contraste de idéias. Entre as pendengas “contemporâneas” não se pode deixar de lembrar a tentativa de linchamento feita pelos concretistas — liderados por Décio Pignatari e os irmãos Campos — ao poeta Cassiano Ricardo, um “velho caduco” para os moldes da poesia concreta que, na década de 50, tentava impor seus conceitos artísticos. As arengas continuaram depois contra a poesia da praxis de Mário Chamie. O nível do embate é de deixar qualquer Polzonoff enrubescido.
Isto posto, apenas para apresentar casos tão “distantes” — coincidentemente entre poetas —, adentremos (de leve) em alguns quintais infestados de cobras, algumas bem venenosas, da literatura brasileira atual. Os grupos (ou grupelhos, em alguns casos) de escritores/poetas tentam impor-se de alguma maneira por meio de um ajuntamento que, muitas vezes, prima pelo cunhadismo exacerbado, o que acaba com qualquer resquício de credibilidade dos integrantes. Lamber-se mutuamente é exercício corriqueiro entre os sócios de tais clubes literários, que normalmente têm força na mídia e, assim, podem propagar suas idéias com intensidade para acertar o inimigo. Tais grupos existem em qualquer lugar deste Brasil. De Curitiba a Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco. É claro que, por motivos mais do que óbvios, a força destas igrejas literárias concentra-se em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Mas por que tais grupos se formam? A resposta é simples e intrigante: pelo poder. Mas de que poder falamos, se a literatura brasileira pouco representa na ordem do dia? Este poder resume-se ao próprio terreiro, às mesquinharias cotidianas, ao estrelato fugaz que percorre poucas quadras. É uma questão de ego. Juntam-se para o fortalecimento, para serem lembrados quando o caixão for fechado sob o olor de crisântemo. Besteira, nada mais. Falta do que fazer na vida. O “mestre” do grupo busca o chamego dos seguidores. Estes, por sua vez, anseiam a proteção na “multidão”, para esconder suas fragilidades, defeitos e pouca qualidade literária. No grupo, todos são deuses.
E como se formam tais grupos? A fórmula é simples e pode ser resumida em alguns pontos cruciais. Vejamos o caso da atual poesia brasileira, com dicas ao postulante a um determinado ajuntamento. Neste caso, moderníssimo.
1) Eleja seu guru, o líder que norteará seus passos vida afora. Decore alguns versos deste amado protetor. Serão muito úteis num primeiro contato e em uma emergência estética.
2) Ao ser aceito no grupo (não é muito difícil, basta ter paciência e bom ritmo na arte do puxasaquismo), nunca — nunca mesmo — tente superar o mestre. Será seu fim. A subserviência é vital para a sua sobrevivência (aproveite a dica e engate um poema com subserviência x sobrevivência; você vai impressionar).
3) Tenha na ponta da língua os poetas que mais lhe agradam. Pode citar à vontade Paulo Leminski e Ana Cristina César: são quase unanimidades entre a piazada e os velhotes que em vão tentam driblar o tempo. Você será considerado chique. Cite qualquer coisa do Leminski, é bem fácil de decorar. Arrisque estes versos: “prazer da pura percepção/ que os sentidos/ sejam a crítica da razão”, que estavam pintados no muro de um colégio aqui em Curitiba. Fácil, fácil.
4) Tenha sempre no bolso um minidicionário de sinônimos, para uma improvisação emergencial.
5) Anote bem esta aqui. Jamais, em hipótese alguma, diga que gosta da poesia de Lêdo Ivo. Será o suicídio. Muito menos fale em Bruno Tolentino. Você será escorraçado como um porco magrelo. Dos clássicos Manuel Bandeira, João Cabral e Drummond, pode abusar. Ninguém vai contestar, apesar de poucos terem lido. Mas não fale em Olavo Bilac. Pode ser o início do seu fim.
6) Não se esqueça dos estrangeiros. Além dos clássicos, eleja um francês. Vá de Francis Ponge, que, além de excelente poeta, é pouco lido e ninguém argumenta contra. Você vai ouvir: “Ah, é maravilhoso”.
7) Defenda a ferro e fogo as idéias impostas por seu grupo. Nunca fuja da batalha campal, mesmo que isso lhe cause constrangimentos.
8) Elogie toda a produção do grupo, sem exceção. Enfim, são todos geniais; inclusive você.
9) Caso não goste da produção de um dos integrantes do clubinho, tente o silêncio, que, já aviso, é um sinal de fraqueza. Se o silêncio for impossível, não titubeie: formule uma bela teoria sobre o novo livro tão interessante de poesias. Dica de argumentação: “teus versos só reforçam a tua escolha estética pela contestação do estado inanimado das coisas; é bom ver que segues uma linha coerente do início ao fim contra o caos e a mesmice”. Pronto, você está a salvo. E pode inverter a ordem das palavras, sem dano nenhum a sua estratégia salvadora: “É muito bom ver que segues uma linha coerente do início ao fim contra o caos e a mesmice; teus versos só reforçam a tua escolha estética pela contestação do estado inanimado das coisas”.
10) Menospreze o grupo adversário. Com o novo livro do desafeto da vez em mãos, gargalhe diante dos asseclas de sua horda de sábios: “vejam, como ele teve coragem de escrever tamanha barbaridade; rimou amor com dor e besta com basta; é uma bosta”, diga em voz alta. Será, com certeza, aplaudido pela força de sua percepção crítica.
11) Mande cartas aos jornais (com pseudônimo, é claro) criticando o comportamento de seus adversários.
12) Nunca sinta vergonha de ser poeta e pertencer a sua panela. É preciso ser um forte nesta sociedade encharcada de incompreensão.
As dicas para o aspirante a panelante estender-se-iam num sem-fim. Cabe a cada um escolher o seu caminho neste espinhoso ofício de pertencer à sociedade dos poetas petulantes.
Já a estratégia para ser o grande guru, mestre dos mestres dos seguidores, é bem mais fácil:
1) Escreva um livro incompreensível de poesia, com vários sinais gráficos, sem ritmo, destrua as metáforas e não dê a mínima para a métrica.
2) Lance um livro por ano. Ou então, seja radical. Lance um livro e fique nas sombras durante anos. Após o exílio voluntário, volte com tudo (não sei dizer como), propague novas tendências, invente, crie, por mais imbecis que elas pareçam. Não se envergonhe, que o reconhecimento há de vir.
3) Fale e escreva coisas incompreensíveis.
4) Faça alguns amigos poetas (poucos).
5) Exerça liderança, sem o uso da força, é claro.
6) Imponha seus versos.
7) Faça mestrado e doutorado em literatura, e escreva um livro de ensaios. Hermético, é claro. E com várias citações em francês e latim.
8) Invente uma nova teoria. Ela pode ser uma cópia melhorada de qualquer coisa que circula pelo meio acadêmico. Ninguém vai ficar sabendo. Pode ficar tranqüilo.
9) Apareça ao máximo para quem te interessa. Nunca o grande público. Até porque grande público em literatura se resume a pouquíssimos.
10) Após conquistar a sua gleba, onde há de frutificar suas idéias, continue o árduo trabalho de convencimento. Seu exército deve ser forte e temido.
11) Conquiste espaço nos meios de comunicação, na universidade e nas editoras. Missão difícil, mas não impossível para uma pessoa tão importante e inteligente como você.
12) Convença os seus guerreiros de que é necessário lançar uma revista com o ideário do grupo, sempre convidando alguns poetas de fora, para dar um ar de pluralidade.
Assim como os iniciantes a panelante, os mestres também têm inúmeros caminhos a seguir até chegar ao topo da vida poética. Mas estas poucas dicas podem facilitar um pouco este caminho de espinhos e de sofrimento. Mãos à obra.
Caso contrário, resigne-se com a sua triste situação de um mero sem-grupo. Mas aí, você poderá fundar o MSG, o Movimento dos sem-grupo, o que não deixa de ser um grupo.
P.S. E por falar em panelas, nada mais propício do que mencionar a do Nelson de Oliveira, em São Paulo. Um panelão, por sinal. Mas com a grande diferença — em relação a algumas caçarolas de poetas — de uma qualidade de grande importância para atual literatura brasileira. Prova disso é o lançamento da revista (em número único) PS:SP (Ateliê Editorial, 100 págs.), que acaba de sair às ruas com belíssimo projeto gráfico de Tereza Yamashita. Não cabe aqui — devido ao pouco espaço — o questionamento de cada um dos 12 contistas que colaboram com textos inéditos para a revista, que surge como “a radiografia de um grupo” de uma “máfia”, como eles mesmo se intitulam. Mas esta reunião traz alguns dos principais (sem levar em consideração qualidade e estilo) escritores brasileiros, surgidos na década de 90, como o próprio Nelson, Marçal Aquino, Fernando Bonassi, Luiz Ruffato e Marcelo Mirisola. Os demais — André Sant’Anna, Claudio Galperin, Ivana Arruda Leite, Marcelino Freire, Bruno Zeni, Joca Reiners Terron e Ronaldo Bressane — ainda buscam um espaço entre os tantos novos escritores que surgiram nesse período.
Este grupo se identifica — apesar das diferenças de idade entre eles — pela aproximação temática: o caos urbano, as dificuldades cotidianas, a opressão da cidade, a solidão e a violência. Tentam a todo custo abrir os olhos de muitos cegos que, como diz Nelson de Oliveira na apresentação da revista, “não conseguem ver nada de novo na literatura contemporânea… Pararam no Osman Lins, no Leminski”. A panela do Nelson ferve a todo vapor. O caldo promete ser dos melhores.