A confusa variedade da existência

Em "Duas vidas", o italiano Emanuele Trevi mostra a alteridade incontornável das relações humanas e a pluralidade quase aleatória que forma cada pessoa
Ilustração: Emanuele Trevi por Oliver Quinto
01/06/2022

As diferenças correlativas de Duas vidas formam este breve e belo livro em níveis diversos. Em primeiro lugar, duas vidas correspondem a Rocco Carbone e Pia Pera, dois amigos do autor, Emanuele Trevi, cujas lembranças formam um texto que transita entre o relato memorialista, o ensaio e comentários sobre literatura. Duas vidas também seriam as duas existências de cada pessoa, “ambas destinadas a acabar: a primeira é a vida física, feita de sangue e respiração; a segundo é a que se desenrola na mente de quem nos ama”.

Ainda existem a vida da juventude, quando tudo “parecia esconder um segredo promissor”, e aquela posterior, quando as perdas de pessoas amadas inserem marcos temporais na percepção de quem fica. E também há a vida de um amigo que podemos observar e tentamos interpretar e aquela que transcorre fora do alcance de nossos olhos e da nossa compreensão. A começar pelo título preciso e sintético, o livro transmite fortemente a alteridade incontornável das relações humanas e a pluralidade quase aleatória que forma cada pessoa, como “se fôssemos gavetas velhas nas quais tudo se acumula de modo disperso”.

A confusa e pulsante variedade do existir toma forma na construção da perspectiva do livro. Trevi, por vezes, usa a primeira pessoa do singular, dedicada a contar a vida dos amigos e explorar diferentes calibragens entre o peso interior e os estímulos externos, entre os fardos do passado e a tentativa de construir alguma coisa no presente. Em outros momentos, adota a primeira pessoa do plural, ampliando o escopo do olhar e refletindo sobre o desafio de estar vivo e o absurdo de absorver as incisões que o acaso provoca na cadência dos hábitos.

A fusão do tom ensaístico e das lembranças apresenta ao leitor traços de Carbone e Pera como escritores e tradutores. Assim, conhecemos outra configuração da vida que transcorre após a morte: aquela conservada nas páginas dos livros deixados pelos dois. Trevi, aliás, chegou a organizar um romance de Carbone publicado postumamente, permitindo que a voz do amigo ausente se misturasse à sua. Creio que a beleza do livro se concentre sobretudo na forma como o autor transita entre o particular e o geral para inserir suas recordações em uma meditação mais ampla sobre a amizade.

Duas vidas, no entanto, também impacta pelas imagens atribuídas a ofícios literários. De uma tradução de Púchkin feita por Pera, por exemplo, ele diz: “O italiano de Pia se transformou exatamente no que em física se chama de material condutor, que é atravessado pela eletricidade do original”. E, sobre um romance de Rocco, “a elaboração artística começa justamente quando a anatomia da loucura busca um caminho diferente daquele da linguagem psiquiátrica”.

Conjugações do viver
Rocco era rígido, intransigente, meticuloso, enovelava-se em suas turbulências interiores com a mesma intensidade com que buscava sentir os prazeres da vida. Como amigo, cobrava amor, atenção e escuta e ressentia-se quando recebia menos do que julgava ser necessário. Como escritor, tentou transformar em alegoria as suas oscilações entre o êxtase e a entrega à própria dor. A sua morte é provocada por um acidente de trânsito, uma combinação fatal de inesperados sem explicações ou culpados.

Pia era alegre, corajosa e ousada. Como amiga, era uma cuidadora generosa e a cadência dos laços com que se ligava aos outros não dependia da manutenção deliberada: era daquelas que se encontrava depois de anos e logo era possível sentir a fluência do vínculo. Como escritora, dedicou-se a ligar a própria forma de perceber a vida ao ritmo da natureza que crescia em seu jardim. A sua morte é fruto do processo gradual de uma doença degenerativa, que aos poucos mina suas forças e sua autonomia.

Além de serem duas perdas que redimensionam a existência como conhecida até então, Trevi aproxima os amigos por meio das lembranças compartilhadas, ou permitindo-se imaginar a vida como os dois a enxergavam, ou ainda pelos contrastes e pelas semelhanças entre os diferentes fins.

No primeiro caso, a rapidez imprevisível, no segundo, a despedida demorada e sofrida; ambos revelam a fragilidade e a brevidade da vida, premissa tão conhecida e ainda assim insistentemente guardada em um compartimento que nos preserva de encará-la muito de perto.

Como o escritor conta a morte por meio da vida, seu relato não passa pela tentativa de encontrar lições nas situações que nos relegam à impotência. No centro da correlação pela diferença está a ideia de resistir: “Não nascemos para nos tornarmos sábios, mas para resistir, para nos salvar, para roubar alguns prazeres desse mundo que não foi feito para nós”.

A resistência, no entanto, configura-se como outra dualidade no livro, porque deve ser equilibrada com a resignação: “Parte substancial da dor que se sente depende da vontade de remediar o irremediável e, portanto, de envenenar o que é com o que poderia ser”. Uma grande amizade é um verdadeiro antídoto para esse veneno, até porque não é possível olhar verdadeiramente o outro quando se condiciona a graça possível da vida às expectativas imaginárias.

Espécie de síntese de resignação e resistência, a resiliência das relações humanas que conseguem atravessar os anos é fruto de uma impura mistura de escolhas e acasos, tão feita de resmungos quanto de sorrisos sincronizados, de compreensões e afastamentos, desentendimentos e atos generosos, esforços e impulsos imperativos.

Olhos abertos
Por meio do olhar e das lembranças de Trevi, conhecemos duas pessoas cativantes e carismáticas, cada uma à sua maneira, compostas por vícios e encantos, olhadas com a compreensão de quem se propõe a enxergar alguém bem de perto sem que a compaixão impossibilite um recuo para ver as coisas em um enquadramento mais amplo, que revela também os traços menos harmônicos.

Antes de conseguir se vincular a um próximo, cada um tem de se acertar com o próprio cobertor curto demais. No caso de Rocco, é precisa lutar para conseguir dar à alternância entre alegria e infelicidade “o ritmo aceitável de sístole e diástole”. Já a disponibilidade de entrega de Pia precisa acertar contas “com o sentido desolador” que surge junto dos abalos que a abertura para vida pode sofrer com as decepções.

Ao compor os amigos desse modo, o autor de Duas vidas mostra como é difícil olhar uma pessoa, realmente olhar, não só por causa da opacidade alheia, mas também por causa dos nossos próprios olhos turvos, cheios de camadas — sejam as de afeições, sejam as de ressentimentos. A amizade ganha, então, os ares de um meio do caminho entre duas vidas, cuja base é a combinação das diferenças, e não a expectativa insensata de pertencimento estreito pela via da identificação.

Nas primeiras páginas do livro, encontramos uma fotografia de Trevi e Pia feita por Rocco. Eles estão rindo, nenhum dos dois olha para a câmera. Alguma coisa na imagem me fez sorrir, involuntariamente. Duas vidas como um todo faz sorrir; é suave e saboroso, embora de difícil digestão, e faz sorrir. É como se as memórias e divagações do autor transmitissem também aquela incomum simplicidade que, no melhor dos casos, sentimos quando estamos com um bom amigo.

Duas vidas
Emanuele Trevi
Trad.: Davi Pessoa
Âyiné
139 págs.
Emanuele Trevi
Nasceu em Roma (Itália), em 1964. É escritor e crítico literário. Seu romance de estreia, I cani del nulla. Una storia vera, foi publicado em 2003. Colabora com importantes jornais de seu país e escreveu o prefácio da tradução italiana de Lavoura arcaica, de Raduan Nassar. Duas vidas (2020), vencedor do Prêmio Strega, é seu primeiro livro publicado no Brasil.
Iara Machado Pinheiro

É jornalista e mestre em teoria literária.

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