A classe média no espelho

Em seu primeiro romance, João Saraiva expõe as debilidades dos laços sociais no Brasil contemporâneo, em um livro urgente e atual
João Saraiva, autor de “O dia em que morri em um desastre aéreo”
01/02/2021

Um publicitário diretamente ligado a políticos tradicionais; uma talentosa arquiteta resignada em ser dona de casa; uma adolescente com dilemas juvenis que confronta o pai, preterindo a advocacia em nome da carreira artística; uma doméstica com admiração pela patroa com quem trabalha há 20 anos; um agente da propaganda política encarcerado após ser acusado de operar um esquema de corrupção. Eis o panorama de O dia em que morri em um desastre de avião, de João Saraiva.

Os personagens de Saraiva soam familiares. Quando o livro toca no tema da corrupção, do enriquecimento de Giovanni e seu vínculo com tradicionais figuras políticas, mobiliza nossa interpretação sobre as páginas de jornais que folheamos com alguma frequência, em busca de notícias atuais. São notícias que adquirem um acento quase novelesco proporcionado pela grande mídia: quem denunciou quem, o que fulano falou, com quem cicrano foi visto, quem beltrano está perseguindo. E, de alguma maneira, quase sempre a ganância e corrupção colorem o pano de fundo das manchetes maliciosamente polêmicas.

Quando Saraiva apresenta a dinâmica da casa de Giovanni, mostrando Zélia, sua esposa, e Giulia, a filha, com todos os dilemas envolvidos, é como se nos colocasse ante uma fresta na porta da residência. Assim, permite-nos observar e escutar os embates da classe média, média alta, do brasileiro comum, o mesmo brasileiro que teria acesso fácil a todo tipo de informação da atualidade e que, direta ou indiretamente, poderia estar envolvido com fatos da trama da política brasileira.

Definitivamente, a narrativa de Saraiva aprisiona o leitor. Ele pressiona o dedo sobre o real, compondo um painel a permitir nosso encontro com a leitura do livro. Destaca elementos responsáveis por esse processo de identificação com a vida do brasileiro comum. E, para isso, segue um roteiro. Vai do que está lá embaixo, no corriqueiro, ao que está lá no alto, no que há de mais novelesco na instrumentalização do poder político.

Saraiva, quando permite esse sobrevoo, aproxima leitor e narradores — no plural, pois cada trecho é narrado por um personagem. Divide as suas angústias, demonstrando como é diversa a percepção dos indivíduos quanto à realidade da qual faz parte. E tudo isso é criado ressaltando a vida de uma ambiciosa família de classe média brasileira.

Giovanni, personagem central responsável pelo título em primeira pessoa, é um publicitário comum, pai de família, que, em determinado momento, é pressionado pela esposa Zélia a ganhar dinheiro. O meticuloso Giovanni então se embrenha no marketing político, trabalhando em campanhas eleitorais com figuras nacionalmente consagradas. A partir de então, valendo-se, aqui, do que muito se diz sobre a milionária mobilização financeira em tais campanhas, a família começa a enriquecer.

Próximos da vida
O dia em que morri em um desastre aéreo demonstra como diversos temas que, aparentemente, são tão distantes por se encontrarem apenas nas páginas de jornais e revistas — e apresentados, como dito, de maneira novelesca — são próximos da vida do mais comum dos cidadãos. O drama das famílias de classe média está presente e revela-se mais como fruto de idiossincrasias, da forma como se relacionam e recebem as pressões morais da sociedade, da dificuldade em receber e se adaptar aos códigos sociais de camadas superiores, do que propriamente pelo caráter único, excêntrico, exclusivo, de cada um dos indivíduos. Todos estão sujeitos aos problemas pessoais relatados no livro.

Um exemplo disso é o adoecimento da filha Giulia, ainda bebê, e o desespero de Zélia por não possuírem um plano de saúde que lhe possibilitaria atendimento médico tido como adequado. Ali ocorre o corte definitivo na vida da família — que, segundo o relato da própria mãe, embora feito contemporaneamente, já não era algo maravilhoso e encantador, com as fantasias de uma linda família. Giovanni, considerado o provedor da casa, é posto na berlinda. No fundo, tem o seu ego questionado em sua capacidade de sustentar a própria família. Inicia, assim, seu caminho entre os políticos. Nenhuma situação pode ser mais comum. A questão é como manejar.

Outro ponto curioso, digno de atenção, é na descrição do temperamento reativo de Zélia ao receber em sua casa a visita da esposa de um político mineiro, cliente de Giovanni. A rejeição à mulher é descrita de maneira impecável, deixando em evidência a sua resistência quanto ao trânsito entre agrupamentos de indivíduos com condutas moralmente condenáveis, a despeito dos ganhos materiais que possuem, muito às custas da corrupção.

Acho um barato essa nossa geração. A mulher não ganha dinheiro e aí faz tricô, pintura, desenho. Tudo bancado pelo marido, né, querida?

Não é o seu caso, você é arquiteta.

Aquela fala de puta daquela puta saiu daquele jeito, aquele jeito de puta, de quem diz exatamente o que quer dizer coberto pelas lantejoulas da civilidade. O silêncio da mesa amplificou meu desconforto. Todos os idiotas e as jovenzinhas viraram para o lado da Vagabunda Que Não Darei Nome. Havia uma faca de peixe encravada em meu peito, até o cabo.

Capacidade narrativa
Saraiva tem uma capacidade narrativa interessante. Ele toma certos elementos como fundamentais, colocando o peso na medida certa a partir de cada um dos personagens. Como são eles que narram suas próprias histórias, acabam por atribuir importância a cada um dos elementos que lhes tocam. Logo, não há um dado comum a todos eles a se sobrepor na narrativa, de modo a ocupar o primeiro plano da trama. Cada um, por força de suas próprias circunstâncias, considera algo marcante por si só. Outro exemplo, nesse caso, é o vício de Zélia em remédios. Na parte em que a história é narrada por ela, isso é marcante. Porém, em nenhum outro momento quaisquer dos demais personagens trabalham com esse dado em seus relatos pessoais. Aquilo pertence a Zélia, configurando um problema seu, sublinhando a sua história e, consequentemente, os seus dilemas e conflitos internos.

Dessa maneira, Saraiva confere intensidade aos personagens, delimitando o que eles consideram como mais relevantes na imensa teia de fatos a comporem o ambiente familiar. Nós, os leitores, passamos então a conhecer a vida de uma família comum, bem como a solidão que os cerca, a despeito de compartilharem uma casa. E, como consequência, ao remeter à primeira pessoa, confere veracidade à trama, entrelaçando as dinâmicas dos personagens com as biografias dos leitores que, certamente, encontrarão algo semelhante em si mesmos, remetendo-lhes às suas questões pessoais. Em certa medida, o livro acaba funcionando como um espelho.

Por meio desse artifício, a narrativa fica ainda mais dramática. Saraiva apela ao leitor de modo que ele mesmo identifique muitos dos conflitos enfrentados pelos integrantes da família. É o caso de Giulia, a adolescente, jovem, que repassa sua história, incluindo a infância e a relação com o pai. O embate entre os dois reproduz muito da insatisfação quanto ao posicionamento que ocupou na trajetória familiar, bem como a maneira como ele mesmo os tratava — principalmente sua mãe.

Ceiça, a doméstica, empregada da casa por muitos anos, demonstra grande estima pelos patrões, sobretudo por Zélia. Praticamente acompanhou o crescimento da menina. Ela mesmo, através de uma menção muito rápida, sinaliza que teve sua própria filha. Em contrapartida, todo este zelo da empregada para com eles não é observado quando Giovanni, Zélia e Giulia contam suas versões da história: “Ceiça, por sua vez, fazia o que as empregadas fazem quando não estão trabalhando (ficam congeladas em um sarcófago esperando a hora de agir)”. Assustador? Talvez. Mas é a verdade: a de uma classe média completamente hedonista, cujo único objetivo é o próprio prazer, sofrendo para satisfazê-lo, enquanto coloca tudo ao seu redor como se estivesse à sua disposição, fechando-se para circunstâncias particulares dos que os rondam, nada mais que isso.

Experimentalismo
Saraiva cobra do leitor um envolvimento com a história. Pois, no instante em que o desastre de avião do título é descrito, é como se se tratasse de algo mágico, quase ficção científica. Somente com o desenrolar dos fatos seguintes é possível a compreensão sobre o que realmente ocorreu.

O tema da corrupção retorna com a descrição da pena cumprida por um publicitário mineiro, Marcos, acusado de ser operador de um esquema. Isso é feito através de um experimentalismo narrativo em que apresenta pequenas chamadas semelhantes às manchetes de jornais, como forma de esboçar fatos considerados por Marcos como relevantes. Através desse recurso, destaca-se a impressão que o personagem em causa tem sobre si mesmo, bem como supostamente a maneira como recebe as notícias nos jornais e revistas, ressaltando o quanto isso lhe é significativo.

Eu vendia jornal, modéstia à parte. A imprensa me amava com aquele amor inconfessável que dedicamos às putas. Infelizmente, a manchete nem sempre era bem feita. Mas eu guardava todas.

1. PUBLICITÁRIO NEGA EXISTÊNCIA DE ESCÂNDALO
(A palavra “existência” é desnecessária.)

2. “EMPRESTEI AO PARTIDO”, DIZ PUBLICITÁRIO
(Emprestei o quê?)

3. PUBLICITÁRIO VOLTA A NEGAR EXISTÊNCIA DE ESCÂNDALO
(Palavra “existência”, desnecessária de novo)

4. COAF CONFIRMA ELO ENTRE FUNDO E PUBLICITÁRIO
(Para o brasileiro médio, que porra é COAF?)

Aqui há, novamente, apelo ao sujeito mediano. Cada um dos dramas vividos pelo publicitário preso é apresentado de maneira vigorosa, também em primeira pessoa. Porém, ao transformar fatos em manchetes, sugere uma crítica quanto à maneira como as informações são vinculadas e tais fatos assimilados. Importa, realmente, o que Marcos pensa, o modo como o seu nome será veiculado nos grandes meios, ou o que realmente aconteceu?

O dia em que morri em um desastre aéreo é um livro tenso, porém, obrigatório. Muito ainda poderia ser dito sobre ele. Realista, ressalta em suas poucas páginas os dilemas atuais por meio da ideia de manipulação das informações pelo grande público, expondo as debilidades dos laços sociais, por mais profundos que sejam. Lê-lo é pôr-se diante do espelho.

O dia em que morri em um desastre aéreo
João Saraiva
Nós
120 págs.
João Saraiva
Nasceu em 1977, no Rio de Janeiro (RJ). É formado em jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e pós-graduado em marketing estratégico. O dia em que morri em um desastre aéreo é seu primeiro romance.
Faustino Rodrigues

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

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