A América profunda de Faulkner

“Enquanto agonizo” adentra o coração dos Estados Unidos e esclarece (e ilumina) muito mais que milhões de teses e teorias
William Faulkner por Nilo
01/05/2009

O leitor de jornais sabe que o fenômeno é bastante corriqueiro. Quem freqüenta com alguma regularidade os cinemas também. Nas exposições de arte, idem. E na música pop. A literatura, então, é o palco certo. Ok, o suspense vai acabar em breve. Em qualquer um dos, digamos, segmentos acima mencionados, não é preciso ver ou ler muita coisa para encontrar uma análise, uma crítica ou ainda uma pensata definitiva sobre os Estados Unidos. Até mesmo no Brasil, país que agora se arroga de pertencer ao jet set internacional do G-20 (o mundo está, de fato, maior…), traz sua contribuição sobre os EUA seja via a fala do presidente da República, seja via analistas políticos que, para tudo, têm um conceito explicativo que estão bem articulados às teorias das Relações Internacionais.

Curiosamente, nenhuma dessas análises, que tanto servem para medir que “a América está dividida” quanto para afirmar que “os EUA são um país ancorado nos valores morais cristãos”, costuma levar em consideração um aspecto elementar para discutir a formação de um povo, de sua identidade e de suas possíveis tensões contemporâneas. Com efeito, poucos analistas, incluindo aqui os intelectuais, conhecem alguma referência da literatura norte-americana, que conta com autores fundamentais para tratar dos aspectos culturais e políticos daquela nação, para alguns, conhecida como a “terra prometida”. Nesse ponto, talvez seja relevante atentar para a obra de William Faulkner, escritor que tão bem soube discutir em seus livros questões que hoje parecem ser exclusivas dos cientistas políticos, dos antropólogos e dos demais acadêmicos.

Faulkner é desses autores magníficos que ajudaram a conceber o romance do século 20. E a história de Enquanto agonizo, agora lançado em edição de bolso pela L&PM, traz a história da morte de Addie Bundren e das desventuras de sua família na tentativa de cumprir seu principal desejo: ser enterrada na cidade de Jefferson. Na história da literatura, o livro é famoso por ser um tour de force de Faulkner, que, segundo consta, teria escrito o romance em seis semanas, sem revisar o texto.

É verdade, leitor, antes mesmo dos blogs e do twitter já existia criatividade. Nomes como Faulkner, Virginia Woolf, James Joyce e Thomas Mann eram detentores desse artifício, e aos leitores cabia o exercício de admiração dos mestres. O tempo passou. E, de algum modo, enquanto os europeus são fartamente comentados e analisados nas universidades e nos cadernos de cultura dos jornais, Faulkner parece deixado um tanto de lado. Fez bem a L&PM em editá-lo nesta nobre versão de bolso. O leitor tem a agradecer por vários motivos, conforme se verá a seguir.

O primeiro deles é a força da literatura de Faulkner. Por força, aqui, é bom entender que se trata de um tema que é narrado com consistência. Faulkner, nesse caso, não é o escritor que vai buscar os bons sentimentos do leitor a fim de tornar sua literatura bem amada. Muito ao contrário. Procura explorar os inúmeros pontos nevrálgicos de um acontecimento, como se este fora espécie de estopim para tragédia sem precedentes. E aqui é bom lembrar: Faulkner não faz jornalismo, ou, o que é muito pior, literatura com temas do jornalismo político ou econômico. Todavia, é o autor quem articula como poucos a condição humana sob a influência de uma grave crise econômica — o livro foi lançado em 1930.

Mas talvez não seja justo apontar o brilhantismo de Enquanto agonizo tendo em vista apenas essas características. Mais vale comentar acerca da forma como o autor opta por narrar a história. Sim, leitor, outra surpresa. Sem necessariamente propagandear que reinventava a roda — afinal, eram outros, os tempos — Faulkner optou por uma estrutura que privilegiava os pontos de vista das personagens (15, ao todo, ao longo de 59 capítulos) em vez de um narrador fixo. Com isso, os leitores captam a percepção dos acontecimentos como se soubesse intimamente a reação dos personagens — como quando se descobre por que um dos filhos de Addie Bundren ser mais favorecido em relação aos demais. E, por isso, a sensação de estar presente junto aos acontecimentos e reações é certamente maior.

Muitos num só
A meu ver, no entanto, o ponto central desta narrativa de Faulkner, mais até do que seu estilo ou estrutura, é o retrato bem acabado que ele traça, com palavras, daquele pedaço da sociedade norte-americana. Não, não é possível cometer mais enganos. Como país, os Estados Unidos não contam apenas com uma identidade, uma única interpretação possível de seus sentimentos, aspirações e decalques de formação. Os Estados Unidos são muitos, também, na forma como vêem e reagem ao mundo. E só dessa forma que é possível entender a maneira como as pessoas entendem o universo ao seu redor.

O papel fundamental da religião no dia-a-dia das pessoas, aqui, começa a fazer sentido, mais até do que as sondagens do Instituto Zogby às vésperas das eleições. Em Enquanto agonizo, para aquela parcela de matutos norte-americanos, a vontade de Deus está acima do querer dos homens. E ai daquele que não aceitar os desígnios do Senhor. É sobre essa vontade: “Às vezes eu perdia a fé na natureza humana por algum tempo; era invadida pela dúvida. Mas o Senhor sempre restaura minha fé e me revela Seu amor bondoso por Suas criaturas”, diz Cora, uma das personagens do romance.

A propósito das personagens, nota-se que o autor prefere alimentar aos poucos a necessidade do autor de conhecer um pouco de cada perfil. Dessa maneira, em vez de apresentá-los objetivamente, o autor revela os detalhes relevantes na fala, na postura e nos gestos de cada personagem. Essa visão parcial é complementada por outros personagens, uma vez que estão vinculados entre si, ainda que façam referências diretas em todas as aparições.

O mosaico criado por Faulkner é pensado não somente para contar a história, mas, também, para fazer com que o leitor tenha abrangência do peso dos acontecimentos. Nesse sentido, mais do que um exercício de estilo ou um recurso do modernismo, o fluxo de consciência, que também seria utilizado por alguns dos autores acima citados, tinha um alvo, um sentido, uma causa. Tornar a história viva na imaginação dos leitores. À época, pode-se considerar como hipótese o fato de que os recursos do romance realista já estavam por demais esgarçados para dar conta do cenário cultural em que vivia o autor.

Em que pese o fato de a sociedade contemporânea, e por conseguinte seus analistas, afirmar que a tal era da informação privilegia o acesso a conteúdos distintos, assim como proporciona o fluxo livre de idéias, determinados tópicos que merecem reflexão mais adequada estão, em alguns casos, escondidos do leitor. A propósito disso, o crítico literário norte-americano Harold Bloom, há alguns anos, escreveu um pequeno grande livro cujo título é Onde encontrar sabedoria? Nele, o autor disserta de que forma a literatura traz o conteúdo que de fato é relevante para o ser humano. Sobre Faulkner, nesta mesma edição de Enquanto agonizo, Bloom assinala que esta é a obra mais surpreendente de Faulkner, algo que se pode constatar já nas primeiras linhas do romance. Esse tipo de informação, para o bem e para o mal, não é oferecido por pensadores simplórios e suas análises prosaicas.

Enquanto agonizo
William Faulkner
Trad.: Wladir Dupont
L&PM
224 págs.
William Faulkner
Nascido no ano de 1897 em New Albany, no Mississipi (EUA), William Faulkner é um dos principais autores da literatura norte-americana do século 20. Entre seus livros, destacam-se O som e a fúria, de 1929, e Luz em agosto, de 1932, e Palmeiras selvagens, de 1939. Ainda como escritor, ganhou o prêmio Pulitzer em duas ocasiões e foi laureado com o Nobel de Literatura em 1949. Morreu em 1962, vitimado por um ataque cardíaco.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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