(18/10/20)
A moça conheceu o rapaz em um cemitério. Tinha quinze anos, estava entediada e resolveu passear entre as tumbas. Não sei que tipo de sapatos calçava, mas imagino que um par de galochas vermelhas causaria bom impacto na cena que estava para acontecer: a mocinha encontrou um crânio no chão e resolveu chutar para longe. Deu um pontapé no encaixe perfeito de ossos que, um dia, abrigou os pensamentos de alguém. E isso não a abalou em nada, não parecia um gesto reprovável, até chegar aquele homem indignado, em passos rápidos até ela. Observou a cena de longe e chegou para dizer a verdade necessária: que aquilo não se faz, não é certo chutar a cabeça de um morto. Talvez alguém ainda chore por ele, você pensou nisso?
Claro que ela não pensou. No momento ela só pensava no quanto era bonito o moço, naquele sotaque e na força dos traços. Era um sírio, imigrante vindo de longe, trazendo mistérios de outras terras. Casaram, seguiram religiões diferentes em solo brasileiro, tiveram filhos, netos, netas, e uma delas me contou essa história. Encontraram um ao outro por causa de um esqueleto no meio do cemitério.
Na primeira versão do relato a moça chutava umas flores que alguém deixou em homenagem a um falecido recente, mas dar um piparote na caveira causa um efeito muito melhor para um encontro amoroso. Não ouvi isso sozinha, éramos mais de trinta pessoas em uma sala de aula, impressionadas com a ação do acaso nessa história que merece ser escrita em detalhes.
Faz parte do meu ofício o encontro constante com livros inexistentes: as pessoas me contam. São projetos que vagam em pedaços separados, correndo entre os pensamentos de quem quer escrever, algo como as cenas de transeuntes atravessando largas avenidas de seis faixas, as trombadas em sentido contrário, a velocidade, a profusão de gestos, o barulho confuso. Organizar a criação é um trabalho que exige muito. Às vezes o verbo certo não é organizar, mas permitir.
Alguns projetos de livros nunca serão escritos e nem sempre isso é ruim. Ideias podem ser tão insignificantes quanto mosquitos, merecem uma palma da morte e nada mais. É preciso entender isso para aprender a encontrar o que merece dedicação. Escrever um livro é entregar um bom pedaço da própria vida a um devaneio. Diante do fato de que não sabemos quanto tempo temos na vida, é prudente escolher bem o que fazer com ele.
Pois de todos os casos, os meus preferidos sempre são as histórias reais que provam o poder do acaso, como o chute na caveira. Na mesma aula outra aluna contou que seus pais se conheceram por causa de um trote, ao telefone. A moça achou a voz do outro lado bem bonita e resolveu esticar a conversa. Outro aluno relatou o curioso caso que presenciou em uma escola de Educação de Jovens e Adultos, na zona rural do Ceará.
Um aluno e uma aluna, ambos idosos e até pouco tempo analfabetos, exercitaram a capacidade recém adquirida de ler e escrever na gostosa tarefa de trocar bilhetes de amor proibido. Poucas palavras, pontos de interrogação. “Amanhã?” era o conteúdo de um dos bilhetes encontrados. Um belo dia, ao amanhecer, os dois não estavam mais em suas respectivas casas. Fugiram, deixando para trás um marido, uma esposa, filhos e um rastro de espanto. A escrita deu força e impulso para que fizessem o que talvez tivessem vontade de fazer há tempos. Devem estar felizes, em algum lugar.
A sorte que tenho por escutar essa coleção de histórias faz de mim uma leitora de dois tipos de livros: os escritos e os imaginados. Muitos nunca irão nascer, vão ficar pelo caminho, apenas como ideia insana que apareceu na cabeça, um delírio momentâneo. Aprendi a apreciar e falar sobre livros que não existem. São palavras, frases, parágrafos inteiros sobre nossas cabeças. Uma infinidade de livros invisíveis voando pelo céu.