Chico Buarque completou oitenta anos no dia dezenove de junho. Boa oportunidade para lembrar de uma canção que ele gravou, mas não escreveu: O caderno, do álbum Casa de brinquedos, lançado como especial da TV Globo em 1983.
Eu era criança, nessa década de musicais para crianças. Arca de Noé, cantando os bichos, fez muito sucesso; no ano seguinte, lançaram Arca de Noé 2. Os especiais eram exibidos à noite, em horário nobre. Plunct, Plact, Zuum imaginava uma viagem galática com a participação de Raul Seixas como burocrata sideral. E finalmente Casa de brinquedos, com canções de Toquinho, que davam vida à bola, ao trenzinho, ao ursinho de pelúcia, à espingarda de rolha. Sei ainda muitas letras de memória. Decoramos na infância e o verso fica lá, como referência útil ou inútil. Quando preparo creme de abacate, ainda hoje, me volta a estrofe de Os super-heróis: “Sou o conhecido Hulk e vou revelar um segredo contido/ No carnaval, na avenida vou me fantasiar de abacate batido”.
Os brinquedos de Toquinho são antigos, de menino que cresceu nos anos 1950. Se ele compusesse pensando numa criança dos anos 1980, quando o disco foi lançado, cantaria o videogame, o Aquaplay e o jogo Genius. Na minha lista de brincadeiras de menina, entrariam o elástico e os jogos de mão, as Fofoletes e a Sorvetinho. Seria possível fazer uma música para o elástico? Imagino que sim: um pulinho, dois pulinhos, peixinho, cavalgada. Duvido, porém, que a brincadeira fizesse parte das memórias afetivas de Toquinho.
Na época não se debatia muito a pertinência de dividir brinquedos entre masculinos e femininos. Olhando os títulos do álbum, vejo que quase todos são brinquedos “de menino”: o avião, o trenzinho, o robô, a bola de futebol. O único cenário notadamente feminino é o da bailarina de corda.
E, então, o caderno. Um elemento de súbita seriedade nesse conjunto. Não é um brinquedo, mas o espaço da alfabetização e das provas escolares. Meninos também têm caderno. Entretanto, para a menina o caderno se tornará um amigo e confidente fiel. Aquele que receberá suas lágrimas.
O caderno se dirige à menina, na voz de Chico Buarque, que derreteu o coração de mulheres de muitas gerações. Um violãozinho melancólico introduz seu canto quase falado, que nos alcança numa calma de pai ou irmão mais velho: “Sou eu que vou seguir você do primeiro rabisco até o beabá…”.
É uma voz de cuidado não possessivo, que lamenta com impotência o futuro próximo e perigoso da menina: “a vida se abrirá num feroz carrossel”. A vida segue sempre em frente, o que se há de fazer?
Por que são as meninas, mais que os meninos, a precisar de tal companheiro silencioso e impotente? Essa triste verdade tornou a canção inesquecível. A música acompanhou comerciais de TV, foi gravada pela Sandy e apresentada no The Voice Kids. Sandy, nossa princesa herdeira, tão amada e protegida, também precisou de um caderno.
Escrevo esta crônica num caderno está comigo desde 2005. Anotei nele os últimos capítulos de O afeto. Esbocei livros que não avançaram, e comecei um romance de cartas, que só consegui completar dez anos mais tarde. O caderno — de capa dura acobreada — ficou pela metade na gaveta, até que, ano passado, decidi preencher os versos das folhas, ainda em branco.
Tenho uma dezena de páginas a preencher, até guardá-lo novamente na gaveta dos cadernos, que mantenho organizada e livre de pó. Ouvi o conselho, e não abandonarei meu companheiro num canto qualquer.