Um bar para Vivian Gornick

Memórias com cenas e personagens compósitos estão no centro da obra da norte-americana Vivian Gornick
Vivian Gornick, autora de “Uma mulher singular”
07/06/2024

Minha amiga casou com um professor que mora num predinho antigo de três andares. A rua antes ligava lojas de material de construção a um ponto de ônibus e a um túnel. Rua sem destaque, de passagem. Agora, o bairro se transformou com uma nova estação de metrô. Foram surgindo bares, sorveterias, livrarias e finalmente — em torno do velho predinho — subiram enormes edifícios comerciais, com fachadas de vidro fumê e áreas de convivência com hamburguerias batizadas em inglês.

O professor (marido da minha amiga) teve a ideia de transformar sua garagem num pequeno bar. É um sonho que encanta alguns homens, como vapor de narguilé: criar o bar perfeito, à sua maneira. O casal construiu um balcão, reformou o banheiro; escolheram as gravuras da parede e espalharam mesinhas. Quando vi o lugar, concordei: é quase perfeito. Para mim, que parei de beber, falta apenas kombucha ou soda italiana ou chá gelado com gengibre — uma dessas bebidas que distraem os abstêmios.

Numa segunda-feira à noite, duas semanas atrás, fui ao bar para uma oficina literária. A ideia do casal é promover eventos culturais, para atrair pessoas que gostam de eventos culturais. Nessa oficina, eu era a professora, ou mediadora, ou facilitadora, como agora gostam de chamar.

É estratégico (oficineiros concordarão comigo) escolher como tema seus livros preferidos. Escolhi Uma mulher singular, de Vivian Gornick — assim, ao preparar a oficina, aproveitei para ler mais sobre a autora.. Tudo nesse livro me agrada, inclusive a capa brasileira: uma ilustração de Nik Neves, mostrando uma mulher de calças compridas e gola rolê, saindo de uma livraria ao sol da tarde, com um livro novo nas mãos.

Pego meu caderno e caneta, busco na internet artigos e entrevistas de Gornick. Meu truque é procurar em inglês. Pesquisando em línguas estrangeiras, reduzo a chance de sair falando coisas que alguém já ouviu num podcast por aí.

Anoto algumas curiosidades sobre Gornick: seu pai trabalhava numa fábrica de vestidos; era passador. O primeiro marido foi um pintor boêmio — ela o conheceu quando se candidatou ao doutorado e mudou para a Califórnia. O casamento durou pouco, o doutorado foi abandonado. O segundo marido era cientista e não durou, como o primeiro. Ela foi também apaixonada por um egípcio, a paixão a levou ao Egito, onde escreveu um livro, com o qual ela mesma não ficou satisfeita.

Gornick escreveu sobre mulheres cientistas e comunistas estadunidenses. Tentou viver apenas como jornalista, mas faltava às vezes o dinheiro do aluguel. Deu aulas em universidades do Texas e Arizona, mas sentia-se oca longe das ruas de sua movimentada cidade natal.

A oficina foi ótima e acredito ter cultivado cinco novas leitoras para Uma mulher singular. Uma curiosidade extra: Gornick costumava ensinar, em suas aulas, seu método de escrita de memórias com cenas e personagens compósitos. Nada de errado em adaptar um ou outro detalhe, se você permanece sincera à verdade geral de sua história. Uma estudante publicou um relato sobre isso, e a partir daí um crítico literário decidiu “denunciar” a “confissão” de Gornick, como se ela finalmente revelasse seus métodos escusos.

Gornick precisou escrever um artigo explicando que não era confissão nenhuma; ela falava isso há anos nas aulas, foi apenas aquela estudante que ouviu pela primeira vez. Memórias são literatura, Gornick defende, não é jornalismo que precisa de apuração e checagem.

Uma mulher singular se abre com um aviso: “Leitor, cuidado: todos os nomes e características identificadoras foram alterados”. Na oficina, lemos uma página que narra o encontro sexual com um homem; Gornick o ama, mas ele insiste em sodomizá-la. Uma aluna pergunta: “Pode ter sido mais de um homem? Pode ter sido mais de um encontro?”. Pode, claro. Assim são as cenas compósitas.

Para concluir: como a oficina no bar quase perfeito, espero que esta crônica desperte em alguém a vontade de ler Uma mulher singular.

Uma mulher singular
Vivian Gornick
Trad.: Heloisa Jahn
Todavia
142 págs.
Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

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