Tu que és forte

Mesmo sem grandes tragédias, a vida é feita de perdas: a amiga irá embora, deixaremos a família, perderemos nosso corpo de infância
Ilustração: FP Rodrigues
28/02/2025

A escolinha onde fiz o pré-primário ficava no térreo de um prédio de quinze andares, num condomínio em meio ao bosque, no alto de um morro, a vinte e cinco minutos do centro de Curitiba. Entrávamos por um longo corredor, paralelo à portaria. O salão do fundo — que, num edifício atual, teria uma academia ou área gourmet — fora dividido em três salas de aula: pré-1, pré-2, pré-3. Lá aprendi a fazer gelatina, a cantar “One little, two little, three little indians…”, lá ensaiamos a coreografia para apresentar no Pullman Junior, quadro local do programa de TV, gravado no bairro do Pilarzinho.

O espaço mais encantador da escolinha era uma saleta sem janelas, atrás de uma escada, onde ficava um projetor de slides. Em cadeirinhas organizadas como um pequeno cinema, assistíamos à projeção das ilustrações da Formiguinha e a neve, enquanto a tia tocava o disquinho da história: “Oh, sol! Tu que és forte, que esquenta o dia, tira a neve que prende meu pezinho!”. A coleção Disquinho — compactos coloridos, lado A e lado B — tinha historinhas que duravam oito minutos: A festa no céu, O patinho feio, História da Baratinha

Tive momentos de alegria na escolinha. Adorava a professora, tia Sunilda. A festa junina no quintal da sua casa é talvez a lembrança mais antiga que tenho da noite: a fogueira, a madeira queimando na escuridão.

Foi excitante ensaiar a coreografia em espiral, de collant e meia-calça, e embarcar no ônibus com a turma para a gravação no estúdio de TV. Que aventura. Um traço da minha história se marcou pelo brilho do espetáculo: ser popular, famoso, alegre, barulhento e colorido. (O que só me trouxe angústia. Brilhar é terrível: a energia se consome e sobra nosso carvãozinho queimado.)

Outro traço, mais fundo, foi deixado pela melancolia das histórias de derrota. A formiguinha fica presa na neve, e ninguém a ajuda. Ela suplica a um e a outro, ninguém tem força ou coragem de ajudar. Quase morta, a formiguinha vê sua pata livre somente quando o sol da primavera derrete a neve. A providência virá nos ajudar, e mais ninguém.

E a senhora Baratinha? Que tristeza. Depois de economizar, depois do esforço para escolher um noivo, seu prometido morre afogado numa panela de feijão fervente. Economia e esforço nada valem. Às mulheres, resta a solidão.

Na formatura, aos seis anos, ensaiamos Despedida, de Roberto Carlos. “Já está chegando a hora de ir…”, decoramos. “Só me resta agora dizer adeus, e depois o meu caminho seguir.”

Por que as histórias de perda me comoveram tanto, aos seis anos? Eu tinha pai e mãe, um irmão, família grande, melhor amiga, um apartamento para morar. Ainda assim… A vida é feita de perdas, aceitei, na terapia. Mesmo que não ocorra nenhuma tragédia: a amiga irá embora, deixaremos a família, perderemos nosso corpo de infância.

Li em algum lugar que os primeiros anos de vida são fundamentais à saúde emocional da criança.

— O que aconteceu quando eu era bebê? — perguntei à minha mãe.

— Lembro que você chorava muito, no bebê-conforto — ela contou. O pediatra recomendara que me deixasse chorar. É assim que as crianças amadurecem, ele explicou. A faxineira se comovia e me pegava no colo, o que a mãe hesitava em fazer, obedecendo ao pediatra.

A mãe compartilhou a lembrança condoída, anos depois, ao acompanhar o difícil tratamento da filha contra a depressão.

Houve uma causa, uma culpa? Numa história sem traumas, é difícil determinar. Foi a orientação do pediatra? Foi a formiguinha, a baratinha? Foi o Roberto Carlos?

Tentei explicar aos alunos, em sala de aula, que as histórias são feitas de perdas. Nos agarramos às histórias. As perdas nos acompanham.

Há quinze anos me curei da depressão, e tudo isso ficou meio pra trás. A gente esquece.

Mas não esquece. Até hoje sei cantar: “O meu coração aqui vou deixar, não ligue se acaso eu chorar, mas agora — adeus”.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

Rascunho