Meu primeiro trabalho em cinema, há vinte e cinco anos, foi a convite de B., meu professor. Ele tinha se aposentado da universidade, e retomava a carreira de roteirista. Um cineasta o chamou para desenvolver uma história — um triângulo amoroso, entre um homem de meia idade, sua esposa, e sua aluna. B. aceitou o convite, desde que pudesse trazer um colaborador. “Gosto de escrever em parceria”, esclareceu. O cineasta então sugeriu que a colaboradora fosse mulher: “Ha duas mulheres na história, seria útil um ponto de vista feminino”.
B. me chamou para uma conversa e explicou o caso: a premissa do roteiro era assim, assado; o cineasta trazia certos caminhos para o enredo que não poderiam ser alterados. “Não sei por que ele me contratou”, continuou B. “Ele não gostou de nenhuma das minhas ideias.”
Eu nunca escrevera um longa-metragem. Foi assim que B. justificou ter me escolhido: “Não tenho outra colaboradora mulher no momento… Nós nos dávamos bem na universidade… acho que pode funcionar”. Cheia das certezas da juventude, eu confiava absolutamente em meu talento e na minha capacidade de escrever qualquer roteiro do mundo. Difícil era escrever literatura, eu pensava; roteiro, era bolinho.
Na verdade, eu não gastava minhas fantasias procurando trabalhos de roteiro. Estava empregada, meio período, como revisora, numa editora especializada em comércio exterior. À tarde voltava para minha quitinete alugada, e esboçava ideias estranhas no meu computador sem internet. Imprimira vários exemplares de uma coletânea de contos, encadernara em espiral com PVC laranja, e tinha distribuído por aí. Sucesso. Recebi uns telefonemas entusiasmados, de pessoas que mal conhecia. O roteiro e suas amarras — tempo presente, terceira pessoa, nenhuma subjetividade que a câmera não consiga captar — pra que me prender a isso?
Foi o que perguntei a B.: “Mas você gosta mesmo disso? Escrever roteiros, realmente?”. B., que já passara dos sessenta anos de idade, confirmou com voz pura e juvenil: “Gosto sim”. Aceitei o trabalho pela aventura e pela chance de conviver mais com B. O dinheiro não era muito. Aliás, foi bem pouco, e meu professor dividiu igualmente comigo.
Durante os seis meses que durou aquele projeto, trabalhamos a quatro mãos. Nas reuniões semanais com o cineasta, definíamos conjuntamente os detalhes das sequências. Mais tarde, no apartamento de B., dividíamos entre nós quem escreveria qual delas. Cada um fazia sua parte em casa, e nos reuníamos — ainda só ele e eu — para fechar os detalhes, antes do novo encontro com nosso diretor.
O cineasta vigiava cada detalhe. Se não gostava de um diálogo, ou de uma descrição, era direto: “Péssimo! Isso não”. B. ficava furioso. Não podíamos encaminhar a história para os caminhos que imaginávamos. Tudo era controlado, antes e depois da escrita. A certo ponto, B. propôs um gesto polêmico ao personagem: tocar o sexo da ex-aluna, que estava largada na cama, desacordada, chapada de alguma droga. O diretor não aceitou a ideia logo de cara. Se o professor desejava a aluna intensamente, que prazer haveria em apenas tocá-la — um gesto insuficiente. Poderia se masturbar, talvez? B. insistiu no toque — foi um momento em que firmamos posição — e trouxe, para reforçar sua ideia, um parágrafo de Tanizaki. Eu compreendi a cena. Era uma invasão, visualmente mais sutil que um estupro clássico, ou que uma punheta (sempre arriscada de representar, cinematograficamente). O cineasta, curioso, queria saber quem tinha escrito qual cena. Não revelávamos. Era um trabalho em parceria.
O filme foi lançado vinte anos depois. Teve resenhas terríveis na internet. Esta nota resume do tom: “Prêmio Macho Escroto Circuito Brasileiro de Cinema 2019. Abuso físico e psicológico por 90 minutos”.
As resenhas acusam o filme de ser condescendente com o homem abusivo. Assisti ao filme apenas uma vez, e não lembro de todas as cenas criticadas. Um sorriso, sim, depois de uma tentativa de estupro: lembro de ter visto na tela, e estranhar (no roteiro, em vez do sorriso, havia um espanto do homem com sua própria violência, de que tomava consciência apenas naquele momento).
Das reuniões de escrita, uma cena foi ideia minha: quase ao final do filme, a aluna reaparece, já bastante abatida pelos anos de doença e dependência química. Argumentei: mesmo abatida, doente e dependente, ela pode ter uma casinha e um namorado. Podem viver de algum trabalho precário, ir tocando a vida, com for possível. Está no roteiro esse bico de vendedor ambulante: “uma caixa com rolos de plástico para embalagem”.
Eu gostava da cena, quando a imaginamos. Escrevi (tenho certeza que fui eu, reconheço o estilo):
Amontoados num canto da mesa, um pacote de arroz pela metade, uma caixa de ovos, uma lata de café solúvel, uma sacolinha de plástico com algo verde e um frasco de remédios. O cachorrinho entra na cozinha e fica ao pé de Márcia, que não lhe dá atenção. Ela abre um lugar na pia, pega dois ovos e a sacolinha de plástico. Lentamente, vai catando coisas no meio da sujeira: um copo, uma tábua, uma faca, uma peneira. Tira da sacolinha um maço de salsinha murcho. Cuidadosamente, lava as folhas debaixo da água. Põe o maço sobre a tábua e começa a picar bem pequeninho. Depois põe a peneira sobre o copo, quebra um ovo sobre ela.
Márcia entra no quarto seguida pelo cachorrinho. Vai até Pedro e lhe estende o copo. Ele olha, faz que não com a cabeça. Ela põe copo e comprimidos num canto da estante e senta na cama. O cachorrinho instala-se a seus pés. Vagarosamente, ela começa a separar os brinquedos embalados dos soltos, organizando-os.
Não tenho uma cópia do filme, para verificar se essa sequência sobreviveu.
No roteiro, vejo a mim mesma, aos vinte e quatro anos de idade. Vagarosamente, separando os brinquedos, em casas desarrumadas, acompanhadas por nossos animais de estimação.