O que fica enterrado

Na juventude, um conto da espanhola Carmen Martín Gaite mostra caminhos do que e como escrever
Ilustração: Thiago Lucas
10/05/2024

Alcanço no maleiro, na pasta de elástico, meu histórico escolar da faculdade. Segundo semestre de 1995: curso de literatura espanhola do século 20, aprovada com nota 8. Pego em outro fichário, capa de papelão azul, as páginas fotocopiadas do conto Lo que queda enterrado, de Carmen Martín Gaite. São registros documentais dos meses que ouvi a professora Valéria de Marco, numa sala do prédio da Letras. Que esse conto tenha me tocado fundo na garganta, incômodo como um sugador de dentista, será mais demorado de demonstrar.

O conto se inicia em frases singelas apresentando a angústia de Maria, mulher de (talvez) uns trinta anos, que se angustia em seu vácuo de identidade. A forma indireta — o choque entre a simplicidade da linguagem, e as tormentas emocionais aludidas — foi o que me marcou, na primeira leitura:

A criança tinha morrido em janeiro. Naquele mesmo ano, quando chegou o calor, discutíamos muito, Lorenzo e eu; dos nervos, dizíamos. Sempre estávamos falando dos nervos, sobretudo dos meus, e o termo era tão impreciso que me agitava mais.

— Você está nervosa — dizia Lorenzo. — Está cada dia mais nervosa. Presta atenção, mulher.

Maria propõe uns dias de descanso em seu vilarejo natal. O marido é racional e não se envolve nas angústias da mulher:

— Não tens curiosidade de conhecer o lugar? Com tudo que sempre te falo…?

— Você gosta de Zamora porque passou tempo lá — ele disse com a mesma voz sem matizes —, mas não faz sentido eu tentar compartilhar essas lembranças e nunca as poderia incorporar. Zamora, por si mesma, não me parece de grande interesse. Você sabe que me angustiam as pequenas cidades mortas.

Ela espera a compreensão de seu companheiro. Anseia por algum sinal de compaixão — um sinal de amor? De proteção paternal? Finalmente, depois de uma noite de insônia, Maria sai de casa, na madrugada de um domingo, e pega um trem qualquer — desce numa cidadezinha, entre as famílias que fazem suas visitas aos parentes. Passa o dia vagueando entre árvores, moças de luto, festas de casamento. Já está escuro quando volta pra casa.

O marido a espera na calçada (ela não avisou aonde ia). Ao atravessar a rua com farol vermelho, Maria é quase atropelada por uma moto. “Você está louca”, diz Lorenzo. “Não sabe nem atravessar uma rua.” Claro, ela não está louca. Essa angústia profunda, que o marido não reconhece, o conto a descreve muito bem. A narração concreta e econômica me foi reveladora; mostrava um caminho do que e como escrever. Tanto que não memorizei a racionalidade invalidante do marido:

— Pare de chorar. Por que você está chorando?

— Choro porque é evidente que você não quer o bebê.

— Mas querer… o que é querer? É incrível que você ainda não saiba a que se reduz a vontade. Vamos falar de coisas reais. Quando olhar o bebê, vou aceitá-lo e gostar dele, imagino. Tentarei criá-lo. Querer… Como vou querer? Para quê?

— Para que eu me console. Para não estar sozinha. Você nunca me consola… Me diz tudo cruamente.

Nessa cena os dois finalmente conversam sobre o filho que deve nascer — ela está grávida, o conto sugere, depois de perder o bebê anterior. O casal parece encontrar uma sintonia possível no último diálogo, mesmo com desencontros de expectativas.

Cabe ao marido a fala final:

— O que importa, mulher, é teus nervos se acalmem, e que o parto corra bem. Olhe por onde anda. Não fique pensando sempre no dia de amanhã. Aconteça o que tiver de acontecer. Você precisa se cuidar, neste verão.

Li estas linhas com comoção, em 1995, como se fosse um acolhimento final. Eu tinha um namorado, e já tivéramos nossa primeira grande briga, numa praia da Ilha do Mel, quando ele acusou minha vontade de transar de “artificial”.

Hoje me espanta que a escritora, nesse xerox de coletânea, seja apresentada como “casada com o romancista xxx”. No meu caso, foi difícil convencer os mediadores do Google que meu ex-casamento não tinha relevância na minha biografia (a informação ainda aparece lá). Tudo isso eu intuía, na juventude. Me comoviam essas mulheres caminhando sem rumo por bairros e vilarejos desconhecidos — como Maria, personagem de Gaite, como Lidia, personagem de A noite, de Antonioni…

Passados trinta anos (e passados namorado, marido, psiquiatra, psicanalista, remédios), ficaram meu histórico escolar e o xerox do conto indicado pela professora Valéria.

Tempos depois a reencontrei, num lançamento. Contei que escrevi um conto inspirado em Gaite… que enviara por carta à professora, que me respondeu. Contei de minha gratidão. Ela não lembrava nada disso. Apenas disse, reflexiva:

— Ah, os alunos de optativas… Sempre uma surpresa.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

Rascunho