— Faça um diário — sugeri à vizinha que passa por uma fase difícil. — Meia hora por dia, de manhã ou à noite. Escreva no caderno o que aconteceu nas últimas horas.
— Tenho uma agenda para anotar as contas, os remédios, as pendências da casa — ela explicou. — Às vezes escrevo pensamentos num outro caderno.
Foi então que me ocorreu, em meio à conversa:
— Diário é narrativo… Terá os detalhes da agenda, e os pensamentos do caderno, inseridos do relato. Tudo flui nos acontecimentos que você narra. Algo assim: “Acabou a Novalgina e fui na farmácia. Estava vazia, os remédios estão caros, pensei: as pessoas economizam até nisso”.
Não era teoria literária — eu tentava ajudar a vizinha. O silêncio dela me compadeceu. Percebi, meio espantada, que até mesmo um relato cotidiano lhe seria custoso. Ela sofre a enfrentar seus dias, e mal consegue registrá-los em forma de lista ou anotações esparsas. Dar forma contínua, assumir uma voz narrativa, era um desafio.
— Quando o paciente consegue contar o que aconteceu, já deu um passo em direção à melhora — diz outra amiga, psicoterapeuta.
No início do ano, li no jornal (digital) que um pesquisador estadunidense usa a escrita como ferramenta terapêutica. Diários: uma vez por dia, sente e escreva meia hora, não importa sobre o quê. Não tive diários na adolescência e juventude, períodos turbulentos em minha vida. Tentei uma vez, na infância, inspirada por Anne Frank. Minha mãe leu, riu, e desisti.
A escrita literária me obcecava — e parecia inatingível. Foi quando descobri as cartas, como forma de escrever ao meu alcance. Ficcionalizando a carta, eu poderia aprimorá-la, até que trouxesse alguma verdade e beleza. A descoberta veio numa mensagem nostálgica a uma finlandesa que conheci numa viagem. Eu tinha dezoito anos. A finlandesa fazia doutorado em musicologia, e me ouviu com tranquilidade num vagão de trem, enquanto eu discorria sobre meus sonhos e angústias em escrever.
Para a finlandesa, não havia as barreiras intransponíveis que eu temia. “Leia os clássicos do seu país”, ela disse, “e siga escrevendo”. A viagem acabou, e a doçura desse conselho permaneceu me aquecendo. Foi a primeira carta, entre tantas que escrevi na época dos correios, em que pude ver, na folha datilografada, um caminho literário.
Um ano depois de publicar meu primeiro livro, recebi o contato de uma pesquisadora da Flórida, que preparava uma dissertação sobre autoras da América Latina. Um de seus pressupostos era que as mulheres, historicamente, chegaram à literatura através da “escrita doméstica”: cartas e diários.
Não pude negar — no meu caso, era verdade.
Recentemente, tenho me cansado da ficção. Escrever estas crônicas — atividade imprevista que nasceu de um convite — tem sido um prazer quinzenal aos domingos. Tenho também um diário, agora. Não é íntimo, mas literário. Um registro de ideias que me surgem, das idas e vindas dos livros em seus arrastados e confusos caminhos de composição.
Minha vizinha — do primeiro parágrafo — me enviou uma mensagem no dia seguinte àquela conversa. Ela havia, sim, começado um diário. Espero que continue. Talvez um dia seu diário se transforme num livro, e eu descubra sua história — aquela que uma conversa foi insuficiente para revelar.