Morreu no sábado (12 de julho) meu parceiro dos últimos três anos de trabalho. Escrevíamos em dupla, o que é incomum. Na minha estante de literatura, só há dois romances assinados por dois autores, justamente os dele com outro companheiro de escrita, trinta anos atrás. Claro, há Borges e Bioy Casares. Na sinopse da coletânea de sua obra em conjunto (tenho a versão digital), leio uma frase de Borges: “Criamos entre os dois um terceiro personagem que só existe quando estamos conversando”. Falei dessa dupla ao meu parceiro (excesso de autoestima?); ele replicou:
— A invenção de Morel é insuportável.
No luto, em vez de me entregar ao lamento, faço melhor em registrar a memória ainda fresca de nosso trabalho. Primeiro houve, há três anos, uma autobiografia, interrompida por uma triste fatalidade, perda que nos atingiu aos dois, e muito mais a ele. Ainda no velório, ele me sussurrou:
— Conversaremos em breve.
(Não usou essas exatas palavras; não lembro quais foram, tento reproduzir seu estilo seco e direto.)
Eu iniciava um livro, que abandonei com vinte ou trinta páginas (ou setenta? já me confundo). Estava escrito que eu assumiria esse papel — desde o primeiro instante eu soube que ali o destino fincou. Foram poucos momentos como esse, em minha vida, que me fazem acreditar no destino, contra meu berço ateu.
Já havíamos trabalho juntos — escrevemos um filme em parceria, no apagar no século 20, quando eu tinha vinte e quatro anos. Na autobiografia, eu me aproximava dos cinquenta.
— Cinquenta? — ele se espantou. — Você parece tão jovem.
Talvez porque ele não enxergava. Ou porque uso o mesmo corte de cabelo há trinta anos. Quem saberá?
Passamos a nos encontrar semanalmente. Toda semana mesmo, sem pular férias ou feriados. Durante três anos, trabalhamos no Natal, ano-novo, Carnaval. Minhas únicas ausências foram nas visitas à família em Curitiba. Ele já não saía de São Paulo. Estava sempre lá, no seu apartamento, na poltrona laranja da sala (que, ele me corrigiu, era salmão). Me contou da tarde em que a poltrona foi comprada — foi um dia importante pra ele (estava acompanhado de alguém que amava, um amor apenas fraternalmente correspondido).
Já ocupei duas páginas de papel e ainda não cheguei ao nosso trabalho — o como escrevíamos. Me pergunto se terei energia, agora, para tal registro.
Formamos um “terceiro personagem”, como Borges e Bioy Casares? Talvez, mas esse personagem era uma versão dele mesmo. Ele era nosso personagem, o que o irritava, muitas vezes, mas era difícil resistir ao charme do modelo. Meu parceiro se ressentia de inventar pouco — não imaginava coisas “do nada”, mas a partir do vivido. Também evito a pura imaginação (que nem existe), porque prefiro a estética da verdade.
A versão dele mesmo que criamos em dupla misturava humor e tristeza. Meu parceiro evitava deliberadamente o melodrama, o que lhe dava um modo de ser, à primeira vista, frio. Duro, cruel até. Fugia de expor lembranças íntimas ou familiares, porque — dizia — o importante era a obra.
Já eu — apesar da ironia que me mantém em pé — sou sentimental. Cantaria publicamente o bolero de Altemar Dutra: “Sentimental eu sou…”. Não esquento a cabeça com a divisão entre vida e obra. Pra mim tudo é obra, desde a adolescência vivo pensando nisso. A “vida” é uma busca de experiências para escrever — romancista concordarão, e poderíamos esboçar num guardanapo, à mesa do bar, alguns cuidados recomendáveis. Por exemplo: a partir de quantos anos estamos liberados para escrever sobre nossos ex?
Voltando ao meu parceiro: eu podia (porque sofri menos) recompor a melancolia da qual ele fugia. Podia sentir a autopiedade contra a qual ele se defendia. Mergulhava nossa pena — recuperando a imagem de Machado — na tinta da melancolia. Meu parceiro se reconheceu nesse lamento. Se estivesse sozinho, não cederia à tristeza por escrito. Em dupla, apoiados um ao outro, era possível.