Infinitivo flexionado

O prazer de ser uma "stalker" de biografias e sobrenomes, um esporte que perfuma a vida de cinismo e torna os dias mais cítricos
Ilustração: Thiago Lucas
12/04/2024

“Materialismo dialético das lésbicas” era o título inicial do meu segundo romance. Desisti — o humor seria sutil demais. Entre tantos alérgicos ao marxismo e às entendidas, a piada não funcionaria ninguém.

Minha melhor amiga da oitava série repetia sempre a máxima: “Toda brincadeira tem um fundo de verdade”. Acredito nessa filosofia adolescente: as brincadeiras têm mesmo um fundo de verdade. No caso acima, admito: gasto boa parte das minhas horas à luz do materialismo, espiando vizinhos. Nas reuniões de condomínio. Nas tretas de internet. Nos lançamentos literários.

Quando um autor desconhecido é subitamente elogiado na imprensa, tento descobrir quem é a figura, e por quais motivos materiais ela merece elogios. Sou uma stalker de biografias e sobrenomes: quem veio de onde e aonde chegou por qual caminho. Tal esporte perfuma minha vida de cinismo e torna meus dias mais cítricos.

Às vezes me prometo:

— Largue esse vício! Confie na pureza de intenções! É impossível ser encantadoramente espontânea carregando tanta desconfiança. Pare de cultivar ressentimento e apenas brilhe!

Adoraria seguir meu próprio conselho. Seria adorável entrar num lançamento badalado e não ficar espiando os poderosos. Quais rostos desconheço mas devia conhecer? Idealizo o dia iluminado quando não me farei tais perguntas. Porém, hoje, ainda não vi a luz. E anseio pelo prazerzinho ácido de chegar em casa e buscar na internet nomes e rostos e relações.

Para me acalmar, às vezes recito mentalmente o mantra de Brecht:

Vós, que vireis na crista da maré em que nos afogamos, pensai, quando falardes de nossas fraquezas…

Mas logo lembro que Brecht foi um esquerdomacho a seu tempo, e o belo verso se azeda.

“Não sou muito rico, mas o suficiente para saber quem são os ricos de verdade”, dizia um amigo que, do meu ponto de vista, era bastante rico. Olhando a pirâmide salarial do país, me encaixo na faixa colorida do terceiro andar, e minha ironia se volta contra mim. Até mesmo esta crônica, tão descontraída, de repente me dá queimação no estômago. O materialismo dialético é minha ideologia ou inveja?

Numa foto de 1978, na festa junina do jardim de infância, eu (vestida de chita) olho torto para minha coleguinha, com rendas de sinhazinha. “A grama do vizinho é sempre mais verde”… analiso meus próprios sentimentos e sou obrigada a admitir que o materialismo é minha racionalização, um mecanismo de defesa do ego.

Decido concluir o texto com leveza e digito no Google: “Como lidar com a inveja?”. Talvez a internet me salve das minhas próprias fraquezas.

Ah, mas até o algoritmo me atrapalha! O primeiro link sugerido é: “Dicas para lidar com pessoas invejosas”. Quem é invejoso, eu ou os outros? Leio a primeira dica: Não fale sobre sua vida pessoal e profissional, pois os invejosos gostam de ouvir sobre a vida alheia, para comemorarem seus fracassos, e se mostrarem superiores.

Conformo-me ao destino, e considero encerrar a crônica com essa prudente lição… E então, me bate uma insegurança sobre o plural do infinitivo: para se mostrarem, ou para se mostrar? A flexão é necessária ou opcional?

Concluirei com a dúvida em aberto. Assim os invejosos poderão comemorarem meus fracassos.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

Rascunho