Escritores e seus empregos

O descompasso entre criar, trabalhar e pagar as contas surge numa reflexão sobre rotina, ambição e sobrevivência que cerca a vida de escritor
Ilustração: Bruno Schier
28/11/2025

Estive duas vezes nos EUA, sempre de férias. Numa dessas viagens, em Chicago, encontrei uma loja de materiais para escritores: blocos, canetas, ecobags, jogos de cartas, dados… qualquer artigo útil ou engraçadinho que pudesse agradar um escritor. Foi lá que comprei um livro marcante — Scratch: writers, money and the art of making a living, organizado por Manjula Martin. Trata-se, como explica o subtítulo, de como pagar as contas se você vive da escrita. Já adianto: dos trinta e três textos, de autores famosos e desconhecidos, conclui-se o esperado. É muito difícil. Mesmo nos EUA.

Amei a leitura, como quem assiste a um gigante tropeçar. Boa parte do nosso sofrimento vem, é claro, da inveja em relação aos vencedores. Se não houvesse bem-sucedidos para invejarmos, nada mau em ser insignificante. Meu amor pelo estilo pé-no-chão dos americanos sempre foi atormentado pelo anti-imperialismo: se eles não nos dominassem com seus livros e filmes sedutores, seríamos mais brilhantes por aqui? Herdeira de Antonio Candido, via Paulo Emílio Salles Gomes, fui educada para fruir nossa mediocridade. Mas — aah! — apenas adorar o poder alheio, como seria relaxante. Lendo Scratch, fiz um balanço: somando a inveja e o ressentimento, subtraindo as novas evidências, sobrou o alívio de perceber que os escritores nos EUA também se ferram pra pagar as contas.

Um dos artigos, The Insider, é assinado por Kate McKean, agente literária. Ficou a lição desse texto de seis páginas, em que ela conta como entrou para a agência, buscando um emprego, com o sonho de escrever e um diploma de mestrado em Escrita Criativa.

Sempre quis ser escritora, e sempre fui prática. Meu plano de carreira era ter um trabalho e escrever, e continuar fazendo as duas coisas até atingir meu objetivo: publicar romances e viver dessa renda.

Não deu certo:

Construir uma carreira como agente consumiu todo tempo livre que eu tinha… Estar dentro do mercado só teve o efeito de me exaurir.

Lembrei desse artigo depois da leitura de Triste cuíca, de Julia Wähmann. Conheci Julia através de e-mails, na agência literária onde ela trabalha. Eu já tinha lido seu segundo romance, Manual da demissão (como resistir a esse título?), e ficara surpresa com a coincidência: ela usa como epígrafe os mesmos versos dos Smiths que citei em Uma mulher sem ambição: “I was looking for a job and then I found a job…”. Logo me dei conta de que não era tanto coincidência, mas um imperativo. Os assalariados da geração X, que amaram o rock inglês, lembrarão até morrer desses versos, em seu sofrimento diário ao bater o cartão.

Triste cuíca é um ensaio narrativo. Julia fala da pandemia, de seu hábito de anotar o cotidiano em cadernos, e investiga autores que escreveram sobre diários. Eu nunca leria um livro sobre a pandemia (passamos por ela, já bastou) — mas um livro em forma de diário que fala dos diários, isso é irresistível. Escrever sobre escrever é meu tema preferido há anos.

Julia Wähmann está muito distante de Kate McKean. Tem a sensibilidade melancólica das perdas irreparáveis e o toque de humor que, como princípios existenciais, movem a criação literária muito melhor que o plano de “viver dessa renda”.

A parte boa da escrita de diários é que ela quase sempre é inconclusiva, não precisa de uma cortina que se feche depois de um grande final. Ela apenas se esvai, sem histórias inventadas ou tramas, e sem as respostas definitivas às perguntas que a despertam e a movem.

Assim escreveu Julia. E assim termino esta crônica. Afinal, as crônicas, como os diários, não precisam de respostas quando as cortinas se fecham.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

Rascunho