O que eu iria fazer num retiro de escrita?, Susan queria saber. Ela nunca faria algo do tipo. Para se enfurnar numa temporada de trabalho, melhor um hotel. Ela já tinha feito isso e adorado, pedir café e sanduíches do serviço de quarto e trabalhar intensamente. Mas se isolar num refúgio rural era apenas sinistro. Que tipo de inspiração surgiria do campo? Eu nunca tinha lido Platão? (Sócrates para Fedro: “Sendo como sou, um apaixonado do saber, nem o campo nem as árvores me ensinam coisa alguma.”)
Esse parágrafo é do livro de memórias de Sigrid Nunez sobre Susan Sontag. “Para ela, era óbvio: a arte supera a natureza e a cidade supera o campo. Por que alguém deixaria Manhattan para passar um mês na floresta?”. As linhas vagueiam em minha mente como uma bexiga colorida que se soltou da cordinha numa festa de criança. Sair da cidade, passar um tempo num lugar bonito e tranquilo, sem nenhuma obrigação, apenas escrever. O fetiche da residência literária.
Foi no ano 2000, trabalhando na adaptação cinematográfica de um romance histórico, que passei uma semana em Paraty com roteiristas convidados pelo Instituto Sundance. Uma semana com tudo pago numa bela pousada, entre brasileiros, estadunidenses e mexicanos; longas conversas sobre escrita, criação, narrativas. Caipirinha no terraço de um enorme chalé frente ao mar, vizinho de Paula Toller.
Ao ser selecionada para um laboratório de escrita, sua existência suada e mal paga de repente recebe um pó de Pirlimpimpim. Você se transporta a um mundo efêmero de atenção, respeito e refeições gourmet. Sua escrita é importante. Você, como artista, é importante. Queremos ouvir o que você tem a dizer. Por alguns dias. Depois você pega um ônibus e volta pra casa.
No mundo do cinema, o almoço grátis é mais frequente que na literatura. Participei de alguns laboratórios de roteiro cinematográfico. Mas nunca amei o cinema tanto assim, e tais experiências só me fizeram sonhar em um dia fazer parte de uma residência literária. Como João Gilberto Noll em Berkeley em Bellagio; como Cristovão Tezza na introdução de um livro cujo título esqueci; como Rachel Cusk em Mérito.
O sonho nunca se materializou porque há sempre algo rolando por aqui – um casamento, um novo livro, um doutorado, um sobrinho. Faz anos anoto na agenda, sempre em janeiro: “enviar projeto de residência literária”. A tarefa vai sendo empurrada para os meses seguintes, o ano acaba e não enviei projeto nenhum. “Tudo bem”, penso. “Se adiei meu sonho de evasão, é porque estava vivendo a vida.” Brinde de champanhe no Ano Novo, e anoto, no dia dez de janeiro da agenda novinha: “projeto de residência”. E o tempo passa.
Nas últimas semanas, recebi pelo correio uma pomada analgésica para essa dorzinha da fantasia adiada: o livro Um quarto em Cavala, de Viviane Ka. A narrativa — um texto delicado e visual — acompanha uma mulher madura que viaja para uma ilha na Grécia (Cavala), para participar de uma residência artística. Através de seu diário, vamos conhecendo seus dias na casa coletiva, os passeios pelo vilarejo e pelo mar, as conversas com os artistas de vários países, as breves aventuras eróticas, as leituras e anotações de escrita.
Fui lendo o livro devagar, para aproveitar a residência grega por empréstimo. A narradora aproveita o prazer de estar naquele lugar tão lindo e com tanta história; entrega-se à imaginação poética, sem perder, ainda bem, o olhar analítico aos dias de exceção — vai durar pouco, ela sabe. Essa não é a sua vida. Ninguém aqui vai lembrar de mim.
A vida imaginada é tão e mais intensa quanto a vida “real”. Por isso lemos e escrevemos: para viver uma camada extra, absorver outras vidas como se fossem nossas. Agradeço a Viviane por ter me enviado seu livro azul, com uma janela aberta ao mar. Na agenda deste ano, meu “projeto de residência literária” já foi empurrado para outubro. Em 2026, quem sabe eu crie coragem.