É a sua casa mesmo?

A tentativa fracassada de se tornar youtuber entre samambaias e uma cópia de um Modigliani, pintada pela mãe
Ilustração: Bruno Schier
15/09/2023

Em 2017 eu me sentia num beco sem saída — e não era por causa do impeachment, nem do Bolsonaro (que ainda parecia uma piada improvável). Era o drama da invisibilidade, o espírito obsessor dos escritores. Há 20 anos eu me determinara a escrever, tinha dois livros publicados, e o pé preso no bueiro de uma ruela onde não passava ninguém.

Sem nada a perder, tive a ideia genial: por que não virar youtuber? Eu tinha lá alguma experiência com processo criativo, autodisciplina, editoras e afluentes. Consultei amigos e alunos no Facebook: Seria interessante um canal de YouTube para escritores iniciantes? Respostas alegres: Sim! Tomei coragem, e fui atrás.

Fiz uns testes com a câmera do computador. Ficou péssimo. Resultados igualmente ruins com a câmera do celular — era um LG simplesinho (sempre fui defensora da tecnologia barata). Aceitei a necessidade de ajuda, e chamei duas ex-alunas para fazer câmera e som por um cachê simbólico. Roteirizei algumas ideias. Só faltava decidir o cenário.

Na época, eu morava numa quitinete. Não planejava passar a vida ali (ou, talvez sim, sou fascinada por minicasas e minimalismo). O problema eram as poucas opções de enquadramento. O único ângulo com luz constante era instalando a câmera em frente à janela, mirando a parede o fundo. Uma amiga fotógrafa sugeriu um arranjo dos móveis, pra preencher a cena: estante de livros, umas samambaias, um quadro (cópia de Modigliani, que minha mãe pintou).

O resultado foi uma espécie de sushi com cream cheese: meio profissional, meio gambiarra. Para o público-alvo estava adequado: escritores iniciantes, no YouTube, poderiam se sentir à vontade assistindo àquela estante bagunçada, com um rolo de papel kraft entulhado entre os livros.

Agora, certamente não era a melhor direção de arte para uma escritora séria. Blusa florida, Modigliani falsificado e samambaias? Samambaias! O Romero Britto do paisagismo! De onde brotou o senso estético dessa mulher?

Na mesma época, lançaram o vídeo de uma poeta feminista, em outro canal literário. Fundo de concreto, camiseta preta, sem cores nem adereços. Eles conheciam o chão erudito em que pisavam. Um figurino merecedor de resenhas e prêmios internacionais.

Em plano aberto, a vida é uma comédia, citaram no obituário de Chaplin. Verdade. Com seis anos de distanciamento, essa “eu” de 2017 parece uma personagem. Já, quando o vídeo ficou pronto, nem desconfiei do meu papelão. Só me dei conta quando um conhecido, pesquisador e poeta, foi resenhar os vídeos para um jornal acadêmico. Ele me perguntou, curioso: “Mas onde você gravou? É na sua casa mesmo?”. E ria, divertindo-se com o inusitado.

Se eu tivesse apanhado mais na infância, me afundaria com aquele riso. Os traumatizados aprendem logo: se não conhece ninguém na festa, ao menos descubra o dress code. E o interior design code. Como escritora, para ser levada a sério, prefira o esporte fino.

Mas fui criada à solta, de calçola e descalça, num lar pós-hippie de entusiastas do campismo familiar. Recebi elogios e beijinhos por todos os desenhos e redações e coreografias e recitais da escola. O amor recebido na primeira infância te prepara para as agruras da vida, dizem. Devo ter recebido muito. Pois fiquei assim, sem vergonha de mostrar minhas samambaias.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

Rascunho