Destino chuvoso

As tentativas de escrever ficção científica param nas palavras que não convencem a autora, que gostaria de fazer algo inspirado na obra de Mario Levrero
Ilustração: Bruno Schier
30/08/2024

Sábado à tarde, chove, e eu aqui penso em escrever esta frase: “Acredito no destino”. Me dá vontade de escrever porque é verdadeira. Mas logo me vem à mente o alerta de Mario Levrero: “Saí da literatura, caí no panfleto” — Cuidado!

Que eu acredite no destino, não era de se esperar, já que fui educada sem religião, em base racional e científica. Na pré-escola, brigava com coleguinhas, declarando que nem deus nem o coelhinho da Páscoa existiam. Desde mocinha, confiei na racionalidade e consegui com razoável eficiência me virar nesse jogo sem regras nem segundo tempo que se chama vida.

Às vezes assisto no YouTube a vídeos sobre astrofísica, teoria da relatividade, mecânica quântica… Os divulgadores da ciência fazem gráficos e animações tentando explicar ideias complicadinhas. Um diagrama usual é o que tenta demonstrar o espaço-tempo, sendo o tempo uma quarta coordenada adicionada ao gráfico familiar das três flechinhas que simbolizam o espaço. Encaixam uma outra flecha meio de viés, que seria o tempo. Desenhar até que conseguimos; já compreender…

Se o tempo fosse só uma flechinha no gráfico, ele teria um “pra frente” e um “pra trás”, teoricamente, navegáveis. O que me agrada nessa hipótese é imaginar que nosso corpo, ou nossa existência, não seria apenas a massa momentânea de cabeça, tronco e membros que olhamos no espelho. Seria, para além disso, uma espécie de serpentina de todos os estágios que fomos e seremos. Uma maçaroca no tempo, seríamos nós.

No espaço-tempo dos corpos celestes, nossas maçarocas-da-vida-toda flutuariam como poeirinha minúscula temperando um planeta-serpentina. Miudinhas, insignificantes… mas bem ali, visíveis, para uma consciência ultradimensional que estivesse à toa, enxergando à frente e atrás no tempo, apenas virando pra lá e pra cá seus olhinhos quânticos.

Pensando nisso gasto meu tempo, neste sábado chuvoso…

Em vez de acreditar no destino, eu deveria dizer que acredito na maçaroca. Mesmo porque estou aqui, presa neste fim de semana, sem enxergar nenhuma das outras sete ou oito dimensões que os físicos imaginam, e muito menos um assunto melhor pra escrever, agora que comecei com essa história de destino.

Brincar com tais ideias dá um gostinho de chiclete explosivo. Stephen King disse que escrever é telepatia. Cixin Liu inventou um desencontro de milhões de anos quando seus personagens caem num buraco errado de uma curva espacial. E Italo Calvino, nas Cosmicômicas, criou uma parentada colhendo leite na lua, entre outras picuinhas que povoam as teorias do universo.

Talvez esses escritores tenham começado suas histórias pra se distrair, assim como eu, soltando suas faíscas cerebrais nas direções que nossos corpos não alcançam. Eles escreveram, eu não. Já ensaiei umas histórias de ficção científica. Começo a imaginar e fico no meio do caminho… não acho as palavras que me convençam. Se algum dia eu perseverar, creio que meu livro de ficção científica se pareceria ao O romance luminoso de Mario Levrero: um ensaio frustrado de narrar as experiências luminosas; ensaio que, justamente por errar mais que acertar, acaba se tornando luminoso ao avesso.

Diz Levrero:

…uma experiência pessoal que para mim havia sido de grande transcendência e explicava como era difícil fazer um relato dela. Certas experiências extraordinárias não podem ser narradas sem que se desmaterializem, é impossível levá-las ao papel…

Que fosse impossível não era um motivo forte o bastante para não realizá-lo, e isso eu sabia, mas me dava preguiça de tentar o impossível.

Tenho O romance luminoso no meu Kindle, e volto a ele sempre que sinto saudades de Levrero. Talvez fosse sábado, e estivesse chovendo, quando ele escreveu tão belas linhas.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

Rascunho