As devastações de Violette

A trajetória de Violette Leduc revela como a censura e a coragem moldaram a recepção da literatura feminina na França e no mundo
Violette Leduc, autora de “A bastarda”
26/09/2025

Quando o filme Violette foi lançado no Brasil, em 2014, eu não sabia nada da escritora Violette Leduc. Fui assistir porque li a resenha no jornal, falando da autora bissexual, pobre e provocativa, amiga de Simone de Beauvoir. Existiam, desde os anos 1980, traduções de seus livros no país (se eu tivesse fuçado!). Porém, o filme não me despertou a vontade de procurá-los. Me causou piedade: ela queria tanto publicar e sofria tanto com isso… talvez não escrevesse tão bem assim. Foi somente com a nova edição de A bastarda, em 2022, que finalmente comprei um livro dela.

Nos últimos anos, temos recuperado as obras de escritoras brasileiras antes esquecidas, como Maria Firmina dos Reis, Júlia Lopes de Almeida e Chrysantème. De gerações mais recentes, Patrícia Galvão e Cassandra Rios tornaram-se símbolos, como mulheres autônomas e combativas. A figura de Violette Leduc assume esse papel na França: a autora que tratou explicitamente da vida sexual feminina e foi censurada por isso, até ser redescoberta em nosso século.

Violette nasceu numa pequena cidade no norte da França. Sua mãe era empregada doméstica e muito jovem acabou grávida de um dos filhos dos patrões. Essa origem marcará a menina: pobre, caipira, rejeitada pelo pai, deixada de lado quando a mãe se casa com um comerciante. Ao mesmo tempo, fascinada pela literatura, ela buscará trabalho em editoras, terá amizade com escritores, encontrará uma voz para si mesma.

No final da década de 1940, incentivada por Beauvoir, Violette começa a escrever sua história de juventude — da primeira paixão na adolescência, com uma colega de internato, até o aborto que encerra seu breve e tumultuado casamento. A obra se chamará Ravages — devastação —, pois é assim que ela vê sua formação: uma série de encontros destruidores. As cenas de sexo são tão detalhadas que até mesmo Beauvoir se choca, considerando algumas páginas difíceis de publicar, pois “enojaram um pouco até mesmo a mim, então como um leitor médio reagiria?”.

A editora Gallimard não aceitou o original na íntegra. Para publicá-lo, exigiu a supressão das passagens mais fortes — o amor da adolescente é considerado de “uma obscenidade enorme” e as cinquenta páginas sobre o aborto criticadas como “um mau Sartre”. Violette cede à exigência, mas a mutilação de sua obra a fragiliza gravemente; passará dois anos em tratamento, para recuperar alguma estabilidade emocional. Os originais censurados terão uma longa trajetória de reescrita e publicações parciais, até chegar, apenas em 2023, a uma edição completa e documentada, pela mesma casa editorial que propôs os cortes na década de 1950.

É instrutivo ler, hoje, a justificativa para os cortes do manuscrito original de Ravages. O comitê da Gallimard sugere à autora “excluir o erotismo preservando a afetividade”. Dizer as coisas como são é chocante para a moral média, até mesmo daquela culta comissão editorial, da qual fazia parte o escritor de vanguarda Raymond Queneau.

Em português, é possível ler as páginas censuradas de Ravages no trabalho acadêmico de tradução de Jéssica Faria dos Santos (UFBA). Já o percurso mais amplo de Violette Leduc, como autora, é analisado na dissertação de Naná DeLuca (USP).

À medida que vou descobrindo essas histórias e assistindo no YouTube a seminários de pesquisadoras francesas, me distraio um pouco de nossos problemas aqui. Se até na França pagaram esse mico! Então podemos nos achar menos caipiras, nós, brasileiras, fãs de Marilene Felinto, que acompanhamos sendo queimada na imprensa por falar claro demais.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

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