Amo e me irrito com Marguerite Duras. Amo porque o texto é lindo, ela é profunda, escreve a verdade. Me irrita quando pesa a mão. Como na história da mosca, que ela conta em Escrever. Na despensa de sua casa, Marguerite assiste a uma mosca que se debate, presa na parede, até morrer. Conta a cena a uma visita, que ri. Insatisfeita com a reação, ela reconta a história a um cineasta, para que a cena assuma então sua gravidade: a morte da mosca, “sua duração, sua lentidão, seu medo atroz”.
Me irrita porque o texto é quase perfeito, até chegarem essas frases que forçam demais o sentido:
Foi um momento de medo absoluto. E foi a partida da morte rumo a outros céus, outros planetas, outros lugares.
A morte, a morte banal — a da unidade e da pluralidade ao mesmo tempo, a morte planetária, proletária. A que é provocada pelas guerras, essas montanhas de guerras que existem na Terra.
É bonito, reconheço.
As frases soltas, fora do contexto, são hipnóticas.
Ao mesmo tempo, a leitura me torna tão íntima ao texto que me sinto no direito de interferir.
Hoje, às cinco da tarde, neste apartamento em São Paulo, converso com Duras, sob o ruído dos carros e motos que passam na avenida Pompeia ao fundo.
Digo: — Marguerite, “a morte planetária, proletária” é um grande achado. Mas precisava insistir tanto nessa ampliação do significado, repetindo que a morte da mosca é a Morte, todas as mortes?
Ela me examina, com seu olhar de etilista octogenária.
Insisto: — Marguerite, amiga… meu senso de elegância agradeceria se você parasse um pouco antes. Pode jogar fora um parágrafo inteiro. Termina aqui: “Vemos morrer um cavalo… Mas quando uma mosca morre, não dizemos nada”.
A câmera se afasta da escritora, e percorre o cômodo, mostrando as garrafinhas de vidro à borda da janela, com flores secas, e um jardim gelado atrás.
Confesso que parte da minha irritação nasce da inveja, por ela ter comprado essa casa de quatrocentos metros quadrados, com o dinheiro que recebeu da adaptação cinematográfica de um de seus livros.
Li, em algum lugar, que ela se orgulhava dos imóveis que possuía. A falência da família, no passado, a marcou. Ser escritora e proprietária, taí algo pra se orgulhar.
Morava sozinha, e apenas escrevia. Sentia-se meio louca, sozinha nessa casa enorme, mas sabia que a solidão era necessária para escrever. “Compreendi que eu era uma pessoa sozinha com a minha escrita, sozinha e bem longe de tudo.” “Conservei essa solidão dos primeiros livros. Levei-a comigo. Sempre levei minha escrita comigo aonde quer que fosse.”
É nessa solidão compartilhada que dialogo com ela.
A escrita passa como nada mais passa na vida, ela diz. Nada mais, exceto ela, a vida (também é ela quem diz). Trinta anos se passaram desde que Duras apareceu no filme Escrever, que se tornou um livro. Assisto às imagens no YouTube e imagino que a mosca deve ter morrido no verão. No inverno em que vejo Marguerite, encolhida na poltrona, as moscas não sobreviveriam.
Posso reclamar de Duras, porque é francesa, está morta, e nunca me escutará.
Posso reclamar porque a amo, e minhas críticas em nada extinguirão tal amor.