Os sons de ontem

As canções, entremeadas pelo tilintar da máquina de escrever, contam a história familiar numa atmosfera de sonho e celebração
Ilustração: Bruno Schier
05/08/2024

A casa de minha infância era musical. Sobrado. Em baixo, na sala da frente, havia uma vitrola e nela um disco de vinil sempre girava. No ambiente sombreado, o ipê da calçada de frente toldava a entrada do sol, a família ouvia de tudo. Algumas poltronas, nós acomodados, o gosto de meu pai escritor misturado ao nosso. Nunca houve conflito. Fomos apresentados a Glen Miller, João Gilberto, Artie Shaw, Dolores Duran, Astor Piazzolla e Frank Sinatra. Às vezes os velhos se levantavam e dançavam. Meus irmãos e eu ríamos daquele bailado extemporâneo. Os dois se exibiam para os filhos. Sempre achei lindo aquele entendimento. Sabiam como se movimentar, mantinham o ritmo com habilidade que nunca aprendi. Jamais consegui me sentir à vontade no dois pra lá, dois pra cá. Infelizmente.

Quantas vezes acordei no domingo com os metais de Moonlight serenade inundando a moradia de Pinheiros. Na máquina de escrever contos eram datilografados, e o matraquear das teclas, premidas com força, não conseguia vencer a melodia da orquestra americana. Aliados, o trabalho de escrever e melodia, fixavam o real significado que atravessava as caixas de som: a atmosfera de sonho e celebração.

E como o espaço era democrático, a gente também apresentava aos velhos os nossos preferidos. E eles gostavam, elogiavam, passavam a adotar também aqueles álbuns modernos. Cat Stevens, Willie Nelson e seu Stardust, Ednardo, Fagner, Milton Nascimento, Paulinho da Viola do Nervos de aço, com a maravilhosa capa do Elifas Andreato. Where do the children play?

E sendo tudo assim misturado, já não sei dizer hoje se Gil, Chico e Caetano eram do time deles ou do nosso. Época de censura, a ditadura comendo solta e matando gente no país, descobríamos juntos sentidos ocultos nas letras, os milicos haviam deixado passar. Praticamente gritávamos os dizeres proibidos: “O terreiro lá de casa, não se varre com vassoura, varre com ponta de sabre, bala de metralhadora”. Geraldo Vandré incorporado em nossas almas.

Às vezes mamãe afirmava ter me ninado ao som de Dindi, do Tom Jobim e Aloysio de Oliveira: “se soubesses o bem que de quero”. O mundo era lindo, Dindi. E papai soltava a voz engrossada, forçando um barítono que não tinha, para imitar Paul Robeson: Ol’ man river.

A grande surpresa era ver a relação do velho com os Beatles. Muitas vezes era ele quem colocava o long play no aparelho. Dizia que ninguém fazia baladas como eles. Quando gostava de alguma coisa voltava, repetia até cansar. Não ele, os filhos. Cheguei a ouvir Eleonor Rigby umas cinquenta vezes seguidas.

E tome Zefinha do Elomar:

Ô Zefinha
O luar chegou meu bem
Vamos pela estrada que seu pai passou
Quando era criancinha igual você também

E como o sangue nordestino circulava entre as nossas paredes, as velas do Mucuripe, malas de couro forradas com pano forte e brim caqui, uma procissão se arrastando que nem cobra no chão, o adoçar do pranto no bagaço de cana do engenho, éramos olharmo-nos intacta retina. Se entrega, Corisco!

E tudo foi tão fortemente entranhado em minha constituição, que hoje sou capaz de chorar aos primeiros acordes de algumas canções. “Esta voz que una vez, me sonó a hueco cuando le dije adiós… Adiós Nonino.”

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho