O que será do verso sem luar?

Sobre nossas cabeças há um troço cinzento triste, mistura de fumaça das queimadas, ar seco, poluição e falta de vergonha da humanidade
Ilustração: Eduardo Mussi
16/09/2024

A pergunta foi feita em música de Gilberto Gil, Lunink 9, lançada em 1967 no disco Louvação. Eram tempos de ditadura militar, canções de protesto, o artista conclamava os poetas, seresteiros e namorados a correr, talvez estivéssemos vivendo as derradeiras noites de luar. E o que seria do verso sem a visão da lua? A questão nunca foi tão atual. O céu de São Paulo desapareceu. Sobre nossas cabeças há um troço cinzento triste, mistura de fumaça das queimadas, ar seco, poluição e falta de vergonha da humanidade. Há dias não vejo o azul do firmamento, sol, até os passarinhos estão voando escondidos nesta bruma encardida que nos envolve. Os olhos ardem, respirar anda difícil, a saúde das pessoas se deteriora na cidade com a pior qualidade atmosférica do planeta. Não há, sem dúvida, espaço para poesia por aqui.

Outro dia a insônia me fez acordar de madrugada. O janelão da cozinha, moro no oitavo andar, mostrou-me um estranho amanhecer avermelhado. Parecia que o mundo do lado de fora estava prestes a incandescer. O sabiá que se esgoela no horário estava quieto, talvez desinteressado de manifestar a paixão de sempre, assustado e com a libido inibida pelas cores estranhas do seu entorno. Até mesmo as maritacas, geralmente atrevidas e desaforadas, evitavam a discussão costumeira, algazarras cotidianas, o dia começava parado, em expectativa, assustador. Voltei para a cama desolado, me peguei chorando no travesseiro, certo de que a vida estava em risco. Pelo menos aquela do meu início, quando ainda havia esperança e a distopia não se apresentava como certeza. Haverá Pasárgada para o meu neto tão lindo e risonho? Com o corpo estirado, brigando com o lençol, desesperei-me. Inspirei uma, duas vezes, e o ar não me preencheu. Sufoco, pânico! O jeito foi apelar para algumas gotas antidistônicas. Sonhei com caveiras. Elas me olhavam e batiam os dentes. Pulei para o chão assustado com aqueles esqueletos cruéis querendo me morder. Bruxismo duro, estalado. Apesar de ser amigo do rei.

Olho para cima e não vejo nuvens. Não sei o que há entre elas e o meu olhar. Embora seja inverno, o calor é forte. Pouco me sobra de conhecimento. Os padrões conhecidos não se fazem visíveis. Há muito pouco a ser entendido. Ou tudo.

Certamente a poesia escapou por alguma brecha quando um urso polar branco navegou magro em uma placa fina de gelo. E o Pantanal pegou fogo, os rios da floresta secaram, a jaguatirica foi atropelada em uma estrada, encontros foram confirmados em plataformas de namoro. O encantado então perdeu todo o encanto. Se a gente não pode ver a lua, o sol, o azul do céu, não existem redondilhas maiores ou menores. Os alexandrinos e decassílabos fogem das estrofes. Todas as rimas empobrecem. A artificialidade prevalece burra. Sim. O que será do verso sem luar? Não sei.

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho