Domingo é dia de a gente ir para a rua. Passo horas emocionado: bom viver em um país democrático, onde podemos gritar nossa opinião nas calçadas, encontrar pessoas parecidas, também capazes de considerar perdão para quem tentou golpear a nação um troço inconveniente, impossível, nem um pouco recomendável. Esse negócio de anistia geral, ampla e irrestrita aos malvados da ditadura militar já deu no que deu: deixou um monte de criminosos com vida mansa, torturadores morreram velhinhos, alguns até tratados como notáveis por gente sem coração. Vestimos nossas camisas vermelhas e fomos para a Paulista. Verde e amarelo não uso nunca mais. Para mim, as cores estão poluídas, não me venham falar em patriotismo. Aliás, esse negócio de amar a pátria é abstrato demais para o meu gosto.
— Tudo é garantido após a rosa vermelhar!
Então é isso, estamos na avenida. E a pauta não é única. Importante também fazer o Congresso entender a nossa insatisfação com a tal PEC da Bandidagem. Onde já se viu deputado poder fazer o que quer, roubar sem consequências, ter passe livre para ser criminoso? Ousadia querer aprovar tal absurdo. A gente esperneia, leva no peito nossos refrões, quero ver ter coragem de votar essa porcaria agora.
Em determinado momento recebo no celular uma foto enviada por uma prima. Nela estão Chico, Caetano, Gil, Paulinho da Viola e Djavan. Meus heróis que não morreram de overdose. Comento que ali está reunida a música de minha vida; não precisaria de outra para escutar até o final dos meus dias, eles me bastam.
Ela me responde, sempre debochada, característica de minha família:
— Spotify está aí para isso!
Mergulho de cabeça na brincadeira, talvez por efeito da alegria transbordando nas esquinas:
— Não sei o que é, gravo minhas músicas em um pendrive.
Recebo de volta a carinha rindo com lágrimas, junto com o comentário:
— Pendrive?
Devolvo:
— É um bagulho muito doido. Você grava as músicas no computador, depois passa para o dispositivo e consegue ouvir como se fosse em um long play.
Ela:
— Lado A e lado B, bacana!
Eu:
— O mais legal é que o lado A e o lado B ficam em um lado só. Não precisa ficar virando toda hora. E não arranha, nem pula. Não tem o mesmo som bonito que o vinil, mas dá para quebrar o galho.
Ela não se dá por vencida:
— Faço o mesmo com o Spotify.
E então, no carro de som, começa a tocar:
— Enquanto os homens exercem seus podres poderes.
Dou-me conta de que é por isso que estou ali. Cantando, volto à fotografia: Chico, Caetano, Gil, Paulinho da Viola e Djavan. Meus heróis que não morreram de overdose. Grisalhos, dignos, nunca cederam um milímetro.