Esses velhos, pobres velhos

O excesso de realidade virtual pode transformar em um verdadeiro tormento a vida dos idosos, muitas vezes apegados a um mundo anacrônico
Ilustração: Bruno Schier
23/12/2024

Tenho pena dos velhos. Falando assim parece até vontade de me excluir, colocar-me em um universo à parte dos jovens. Eu seria um mocinho referindo-me aos maduros. Há uma razão simples: o espelho lá de casa é camarada. Tem artimanhas interessantes, apressa-se em modificar a imagem exibida quando me percebe olhando, reflete amistoso o rapaz de ontem, revela delicadezas ao me confundir de propósito. Invariavelmente!

Mas como dizia: tenho pena dos velhos!

Faz tempo o mundo deixou de ser um lugar apropriado aos viventes de mais idade. A realidade virtual, as digitalidades da vida contemporânea expulsaram os humanos com excesso de experiência de um cotidiano mais aceitável. As coisas simples tornaram-se impossíveis. Falo por experiência própria, e aí sou obrigado a desmentir a criatura que me reflete. Apesar da simpatia dela, meus poucos cabelos, quase todos brancos, fazem com que perceba o idoso logo após despir-me da fantasia de Narciso, quando paro de observar-me no armarinho sobre a pia do banheiro. Se é difícil para mim, imaginem para minha mãe. E sim, não estranhem, tenho mãe viva. Corações centenários são vulgares.

Houve um tempo em que era trivial assistir televisão. Embora precisássemos ser pacientes e buscar a melhor imagem mexendo na palha de aço pendurada na antena, existiam apenas dois botões. O menor servia para ligar o aparelho, aumentar ou diminuir o volume. O maior, ao ser torcido para a esquerda ou direita, aos pulinhos, mudava o canal. E pronto. Só. Nada mais simples.

Kolynos Ah!

Hoje em dia, muitas vezes sou chamado por D. Marise que, do alto de seus noventa e quatro anos, avisa que faz algum tempo não consegue assistir ao Repórter Esso. O programa de notícias há séculos tem esse nome, para ela sempre terá. Preciso, então, dar um pulo à casa materna. Lá, depois de apanhar um pouco, consigo calibrar o dispositivo de tela plana, quarenta polegadas, para acessar a Globo e o Jornal Nacional. Na maior parte das tentativas a anciã se perde quando está sozinha.

Talvez os rapazes que trabalham nas empresas de tecnologia se esqueçam de seus avós. Quando inventam suas máquinas e disponibilizam o produto ao público, não têm em perspectiva o fato de já terem nascido conhecendo os “truques” para viabilizar sons, imagens, softwares, toda a parafernália a ser vendida pronta a receber novas versões assim que piscamos os olhos. A gente, obviamente, não consegue acompanhar tamanho dinamismo. Fazemos grande esforço de aprendizado sabendo que amanhã tudo aquilo será obsoleto.

Mamãe, outro dia, manifestou saudade de ir ao cinema. Antes escolhia o filme na programação do jornal, verificava salas e horários, chamava um táxi e ia.

— Agora preciso comprar o ingresso pela internet e reservar assento. Não sei fazer isso — resmunga.

E não tem como pagar com PIX, acha complicado, esquece a senha do cartão, sente falta do tempo em que assinava cheques. Agora solicita que eu saque numerário no banco e paga tudo em dinheiro.

— Não seria bom se nas salas de projeção os filmes nacionais tivessem legendas? Como sou surda não consigo acompanhar — resmunga novamente.

Falam tanto em diversidade, colocam profissionais traduzindo em libras, mas se esquecem de um detalhe tão simples…

Esses velhos, pobres velhos

Ah! Se soubessem o que não sei

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho