Dores do mundo

Professora demite-se após 36 anos: entre desrespeito, medo e solidão, uma reflexão sobre envelhecer e carregar as dores do mundo
Ilustração: Bianca Rivetti Burattini
01/09/2025

E então já não nos sentimos confortáveis. Olhamos o mundo em que vivemos como um lugar estranho demais, capaz de produzir situações para nós injustificáveis, tristes, até mesmo assustadoras. Leio sobre a professora que se demitiu após trinta e seis anos de magistério. Um aluno, menino de sete anos, criticou-a com violência, sem respeito, após análise tristemente verdadeira se levarmos em conta as expectativas cotidianas:

— Não sabe fazer TikTok, minha mãe disse que a senhora não serve para nada!

A frase do pequeno, um baixinho de cabelos revoltos, resumiu o incômodo sentido há tempos. Não havia mais prazer no trabalho. Apenas confrontações, desprezo, tensionamento insuportável. Controlar a classe deixara de ser mais uma tarefa entre tantas, passara a ser a necessidade principal. Pela manhã, na hora de sair de casa, aquela sensação de medo tornara-se verdadeiro martírio. Olhava para a porta que precisava abrir, a que dava para a rua, como se do outro lado as calçadas escondessem armadilhas instransponíveis. Respirava fundo, sentia o coração disparado e, trêmula, girava a chave na fechadura. Difícil suportar aquela falta de ar. Tinha lido a respeito. Havia diagnóstico: agorafobia.

Curiosa, sempre disposta a aprender, hábito que trazia da profissão, achou o termo interessante. E foi pesquisar. O vocábulo tinha origem grega. Vinha de “ágora”, que significa praça pública ou local de reunião. Estava desenvolvendo, de forma acelerada, fobia, terror aos lugares públicos. Talvez por ser tão pouco vista e mesmo maltratada neles. A cidade representava agora o não lugar. Sem afeto, acolhimento, troca. Nela, na São Paulo de sua vida, o caminho da escola para onde se dirigia diariamente carregando armas pesadas de empunhar. As forças, aos poucos, sendo engolidas pelo escárnio das crianças.

Decidida a interromper o fluxo do destino vocacional abraçado, lembrou-se do passado não tão remoto. Impressionante como o tempo dispara e nos deixa solitários. Silêncio cinzento engolindo tudo. Um dia somos jovens e confiamos no futuro. Levantamo-nos, lavamos o rosto e a água fria que limpa nossos olhos nos enche de disposição. Temos a firme convicção de sermos indispensáveis.

— Professora, guardo com carinho todos os cadernos das suas aulas. Obrigado!

Nos enganamos ao inferir, ignorantes, ser aquela sensação gostosa, sentida depois daquele encontro fortuito, garantia de felicidade eterna.

— O Zezinho se casou, tem dois filhos pequenos.

Logo vem a experiência, a velhice, somos idosos.

— E o TikTok? A senhora não serve para nada!

E a televisão fica mais difícil de se assistir, perdida entre infinitos comandos do controle remoto; o celular emite um som insistente, impossível de ser abafado; a rede social usada ficou obsoleta, não consegue entender a nova; o cinema precisa ter lugar marcado remotamente, sempre se esquece e perde a sessão. Enxergar, ouvir, o marido morto, os filhos ausentes, o nervo ciático, as dores do mundo.

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho