Dois, sete, três, zero, cinco, quatro

O sonho com um número de telefone resgata um tempo repleto de boas lembranças
Ilustração: Eduardo Mussi
14/10/2024

Acordei com o número na cabeça. Não demorei muito a identificá-lo, embora tenha estranhado vê-lo chegar assim tão nítido de repente. Rio de Janeiro, minha infância, telefone da casa de minha avó. O aparelho negro e pesado ficava sobre uma mesinha lateral entalhada em madeira, os pés torneados, escura, devia ser de imbuia. Quantas vezes não ouvi D. Olívia atender depois do trim característico:

— 273054.

Era bem assim. As pessoas tiravam o fone do gancho e informavam para onde o indivíduo do outro lado havia ligado. Hoje acho estranho, redundante. Mas talvez na época os sistemas fossem menos confiáveis. Embora tivéssemos rodado o disco da engenhoca colocando o dedo no anel estreito do dígito correto, não era garantido o acesso à casa desejada. A chamada poderia ser encaminhada para outro endereço. Por isso todo mundo repetia, em cada canto do país, a sua sequência de algarismos. Quantas vezes não corri apressado, muito criança, querendo ter o privilégio de ser eu o encarregado de poder repetir:

— 273054.

Ainda deitado, recém-desperto, tento entender a razão da invasão da privacidade do meu repouso por aquela sucessão numérica. Mesmo tendo identificado a origem dela, e sentindo prazer em recordar aquele passado tão distante, a vida me ensinou a tentar ir mais além. Um sonho não surge assim do nada. Traz com ele significados, precisamos entendê-los, ou Freud teria trabalhado à toa. Que desejo reprimido estaria latente em meu inconsciente?

Memória. Ter visto aquele senhor, em conversa recente da família, ser incapaz de lembrar o nome da rua onde morava me chocou profundamente. Mesmo sabendo estar ele em processo inicial de Alzheimer. Pior foi ter presenciado, em seguida, ele não conseguir declinar o nome da nora. Apesar dos presentes, carinhosamente, tentarem ajudá-lo. Aquele diálogo me impressionou muito.

Uma coisa é ver a Juliane Moore, em Still Alice, ir lentamente se desligando da realidade. Estamos diante de um filme, a gente assiste como ficção, embora saiba ser verdade. Outra é presenciar o prenúncio de uma tragédia. Alguma doença apagar o conhecimento de alguém, resetar seu hard disk.

E se me desse um branco e declamar Bandeira se tornasse impossível? Medo de perder os versos que me constituem.

273054

Tenho setenta anos e caso vovó Olívia ainda existisse, mesmo com os 118 anos que agora teria, e ela morasse no mesmo endereço do Leblon, eu poderia chamá-la e saber das novidades. Porque preservei amorosamente a maneira com que passamos a nos falar depois de nos mudarmos para São Paulo. Era só girar o dial:

273054

Jamais esquecerei tal número. Nunca! Seria um desencanto.

Fecha o meu livro, se por agora.

Não tens motivo nenhum de pranto.

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho